30 de out. de 2010

Para acabar com o julgamento de deus


Foto: Fábio Alt

Experimentação bem vinda


O Surrealismo foi um movimento teórico-artístico nascido a partir de Freud e de suas reflexões acerca do consciente e do subconsciente. Consiste em empregar esforços estéticos sobre um ideal de descontrole da expressão. Uma vez que o consciente organiza o mundo, está no inconsciente a parte do mundo que não foi organizada ou já se desorganizou. Nas primeiras cinco décadas do século XX, a Europa teve seu mapa geográfico bastante modificado. Economicamente, as grandes potências já não eram a Alemanha, a França, a Holanda e a Inglaterra, mas os Estados Unidos e a nova Rússia. Na política, muitas colônias haviam sido perdidas, reis já não tinham mais o mesmo poder, a classe média estava devastada pelas duas guerras. Antonin Artaud (1906-1948) viveu na França exatamente nesse período de grandes transformações sociais, políticas e teóricas. Tratado em manicômios franceses desde 1937 (“O Teatro e seu Duplo”, um dos livros mais importantes do teatro contemporâneo, havia sido lançado por ele dois anos antes), em 1946, ele cria “Para acabar com o julgamento de deus”, um discurso radiofônico proferido por ele mesmo com a ajuda de alguns de seus amigos.

Algumas coisas são importantes destacar desse texto antes de tratarmos sobre a nova produção do Grupo Jogo de Experimentação Cênica, que traz a produção desse texto para Porto Alegre. Uma delas é que a literatura nunca foi a forma ideal de arte surrealista por uma questão factual: palavras só são palavras se estiverem organizadas a partir das regras de um idioma. Sem isso, não são palavras, mas símbolos gráficos. Frases articulam palavras e textos articulam frases. Assim, a livre expressão literária inexiste em essência. Artaud recorre ao simbolismo para criar o efeito surrealista em seus textos: de um lado, um formalismo exagerado e, de outro, imagens, imagens e imagens. O resultado é uma evolução do barroco, mas sem o teocentrismo/humanismo vigente na renascença.

Outra questão é o que o texto não é teatral, mas radiofônico. Se considerarmos teatro a arte em que A interpreta B diante de C, vamos ver “Para acabar com o julgamento de Deus” como teatro apenas no estúdio em que foi gravado o programa. Talvez, por isso, as palavras tenham ganhado tanta importância no texto: era essencial que o texto fosse ouvido ou nada mais restaria dele.

Por fim, que a expressão “Para acabar com o julgamento (ou juízo) de deus” é ambígua. Não sabemos se “de Deus” é um complemento nominal (Deus julga) ou um adjunto adverbial (Deus é réu) a princípio. Embora o posicionamento de Artaud em relação à Igreja seja conhecido o suficiente para pensarmos que se trata de um Deus que julga os homens, pensar na segunda opção não deixa ninguém em descrédito.

Os méritos da produção são, antes de tudo, a própria produção. Produzir um texto de Artaud, ou seja, atualizá-lo, revivê-lo, redescobri-lo é atitude que merece aplausos de uma cidade como a nossa. O Grupo Jogo presta um serviço à cultura teatral, não apenas por montar o espetáculo, mas por fazê-lo dignamente: programa em dia, sala confortável, horários cumpridos, além de um grupo de atores e técnicos bem qualificados.

A concepção da direção foi construída a partir de Deleuze e Guattarri que, em um dos seus platôs, tratam do “corpo sem órgãos”. Com isso, no espetáculo, consta subjacente (o que é melhor ainda) a ideia de um sentido que não se articula, mas que é já articulado, porque é imanente, é resultado, é lugar de intensidades e de preenchimentos. Talvez isso tenha norteado a produção ao optar por um cenário escuro, com guarda-chuvas no teto e areia no chão. Um lugar preenchido, sem forma, sem profundidade, mas também não raso ou poluído. Talvez motivado pelas últimas notícias, o primeiro impacto oferece ao espetactador chances de lembrar da mina chilena. E render-se a essa imagem só prova o quão normativa é nossa mente. Artaud começa, através dos atores, a quebrar com essas formas, essas assimilações, essas pseudo-bases que o consciente vai construindo.

Difícil analisar as interpretações num produto que se pauta pela não pauta. Por algum motivo, o espetáculo não é impactante e, em alguns momentos, cheia a museológico, isto é, a coisa velha de montar um texto em prol de um autor. Talvez sejam os motivos que fazem sentir isso os gritos que sucedem os sussurros, luz que sucede escuridão, simetria que sucede desorganização.  Mas penso não ser possível fugir dessas formas num espetáculo teatral que prevê a estética das intensidades, embora seja antisurrealisticamente formal. O maior ganho, ou destaque, seja para o fato de que não há destaques: texto, visualidade cenográfica, lúmica e vestual, assim como interpretações estão no mesmo adequado nível.

Para acabar com o julgamento de deus é um espetáculo experimental porque experimenta uma linguagem em reação contrária a si mesma. Experimenta um produto resultante de Artaud e Deleuze/Guattarri (e outros tantos teóricos). Experimenta uma interpretação cênica num texto radiofônico. O resultado de qualquer experimentação, desde que asseguradas as condições sociais do teatro (oferecer uma má produção teatral na cidade significa afastar público, esse caro a todas as outras produções), é sempre positivo. Aqui também o é porque a experimentação de que se trata é rica e potente em conteúdo e, por isso, em méritos.

*

Ficha técnica:
Direção e Concepção: Alexandre Dill
Adaptação, Roteiro e Interpretação: Gustavo Susin, Igor Pretto, Thainá Gallo e Vicente Vargas
Figurino: Alexandre Dill e Valquíria Cardoso
Cenário: Bruno Salvaterra e Alexandre Dill
Criação visual: Bruno Salvaterra, Gustavo Susin, Alexandre Dill, Isabel Ramil e Valquíria Cardoso
Iluminação: Igor Pretto
Trilha sonora original: Leonardo Aprato e Protásio
Trilha sonora pesquisada: Grupo Jogo
Direção musical: Vicente Vargas
Preparação corporal: Pedro Coelho, Alexandre Dill e Igor Pretto
Textos: Antonin Artaud, Heiner Müller, Félix Guattarri, Gilles Deleuze, Allen Ginsberg e Crista Wolf
Produção: Grupo Jogo de Experimentação Cênica
Produção Executiva: Gustavo Susin e Karine Lemos.

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