6 de abr. de 2010

Mães & Sogras

Foto: Julio Appel

O teatro fala 

Há quem diga que o teatro nada tem a dizer. Mas eu me sinto muito privilegiado quando, havendo tanto a dizer através dele, deixam-no dizer. Assim é “Mães & Sogras”, uma oportunidade de dizer sobre o teatro, mas um momento especialíssimo em que deixam o teatro dizer. Quem tem muito o que falar torna-se ainda mais sábio quando ouve. Marcelo Adams, nessa produção da Cia de Teatro ao Quadrado, ouve. E nos convida a ouvir. E o teatro se movimenta pela sua própria fala de forma muito lenta, muito sutil, amparada por mais essa produção cuidadosa, responsável e bem-vinda de Marcelo Adams e Margarida Leoni Peixoto.

“Mães & Sogras” me lembra a imagem de um filete água escorrendo pela torneira. Não é chato como um pingo. Não é escândalo como um jato. Mas prejudica o ambiente, interfere, faz danos aos ambiente como os anteriores. É sensível. É sinuoso. Por ser teatro, é agradável. Não o fosse, seria perigoso.

Explico (ou tento): a encenação é lenta. As cenas parecem longas. Você já está sabendo o que está acontecendo há alguns minutos, mas ela continua firme, segura no talento do encenador em cujas mãos também nós nos sentimos seguros. No início da peça, estamos na superfície de um redomoinho. Conhecemos as personagens, duas mães judias a falarem dos filhos, das noras e dos genros, dos familiares alheios, dos vizinhos comuns. Num palavrório inconseqüente, conhecemos o seu universo, conhecemos as pessoas, sentimos o teatro rodar. O ritmo é constante. Constante, afinal, como um filete de água na imagem que me acompanha e que eu divido.

As horas avançam e somos levados mais para dentro desse redemoinho. As perucas que aparecem na primeira cena eram apenas uma questão estética. Agora são conseqüências de uma quimioterapia. E notem: a distância entre algumas perucas e câncer não é uma existência a ser tratada de qualquer forma. Aparece aí a força silenciosa do filete a desperdiçar energia. E Adams percorre passo a passo essa distância, significado após significado, cautelosamente, delicadamente. O teatro, então, sorri. O filete de água continua correndo vitorioso da torneira.

O cenário é um dos elementos mais bem explorados da peça. Ao invés de uma sala realista, ou a nudez econômica, Rodrigo Lopes constrói um painel com ossos à mostra. Ossos que nos dizem sobre nossa estrutura física (e por que também não mental?). Nossa herança genética, bastante cara aos judeus que não dividem apenas a religião, mas também a raça, está ali, exposta em telas de Raio X. A doença avança, como também a velhice que sempre enfraquece o corpo, embora não em todos os casos fortifique o espírito. Um painel com um buraco, uma porta por onde se entra e se sai: por qual buraco nos entram os problemas? Por onde também podem sair as soluções? Um furo através do qual sai também esse filete de água fino e persistente que nos empurra para o fim do redomoinho.

A loucura. A morte. A solidão: o ralo da pia para onde vai toda essa água discreta que escorreu da irresponsável torneira. Esse é o destino final que contemplamos agora após termos nos divertido com as ótimas piadas de humor negro desse interessante texto de Leandro Sarmatz e ouvido das canções interpretadas por Margarida Leoni Peixoto, quem também sustenta a melhor interpretação do elenco. Há também que se destacar Naiara Harry na cena do hospital. Sem a voz exageradamente grossa e desprovida de entonações quase agressivas, nesse momento, sua sutileza se encontra com todos os elementos da narrativa. E, num tempo em que a referenciação já não encontra terreno tão profícuo no campo das artes, coerência se faz fundamental no teatro dramático.

A força com que os judeus da peça mostram agarrar suas tradições é uma prova de amor aos cinco milênios de sua existência. A constância do tema encontra parceiros no ritmo da encenação. Nada vem do acaso, nada assusta, nada comove, tampouco faz gargalhar. O fim chega ao natural, tanto o fim da vida, como o fim da peça, que marca a morte dos personagens até a próxima apresentação. O novo espetáculo da Cia. de Teatro ao Quadrado agradece ao público que o agradece de volta por ter deixado a arte falar com seu melhor vocabulário. A produção acrescenta por ter, antes, se deixado acrescentar.

Assim, o cair de água na pia é apenas o resultado de um ponto de vista parcial nosso. Afinal, também poderíamos supor que é o ralo quem pede à torneira água para beber.

*

Ficha técnica:

Autor: Leandro Sarmatz
Direção: Marcelo Adams
Elenco: Margarida Leoni Peixoto (Bella Molodóvski), Naiara Harry (Anita), Carla Gasperin (jovem paraplégica), Cláudia Lewis (Jussara), Rafael Ferrari (Beto)
Cenário: Rodrigo Lopes
Figurinos: Rô Cortinhas
Iluminação: Fernando Ochoa
Trilha sonora: Marcelo Adams e Rafael Ferrari
Coreografias: Carlota Albuquerque
Produção: Cia. de Teatro ao Quadrado e Rodrigo Ruiz
Realização: Cia. de Teatro ao Quadrado

1 Comentário:

Michelle C. Buss disse...

Adorei a peça, realmente é um trabalho fantástico. Tive o grande prazer de ver sua estréia nas louváveis luzes do grande Theatro São Pedro. A atriz Margarida, sem dúvida, é ótima. Porém, discordo quanto a Naiara Harry. Qualquer um que tenha uma sensiblidade mais apurada percebe que a atriz está muito de acordo com seu papel. Anita é uma mulher irreverente e cheia de si, muitas vezes agressiva e cheias de entonações, caracterizando o papel da mãe super protetora e impetuosa.

Adorei mesmo a peça e espero ver mais trabalhos desse naipe no teatro gaúcho. Também sustento o desejo de ver essas duas estrelas, Margarida e Naiara, mais uma vez, contracenando com maestria.

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