14 de nov. de 2011

Philoktetes


Foto: Ana Fonseca

O excelente Gustavo de Araújo

A elogiosa versão de “Philoktetes”, em cartaz no Projeto Novas Caras, é a do dramaturgo alemão Heiner Müller (1929-1995), publicada em 1965. Estabelecendo um diálogo com o texto clássico de Sófocles e com o de André Gide, Müller confere um certo ineditismo ao mito grego, distanciando ele da trágica subserviência do homem aos desígnios divinos, propondo algumas questões éticas fundamentais, sem que as alterações levem a pensar a versão como um resultado de alguma atualização (no sentido meramente temporal do termo). Apresentado no Brasil pela primeira vez em 1988 (direção de Marcio Aurélio), o espetáculo agora dirigido por Paulina Nólibos tem, além do mérito de trazer ao público porto-alegrense um contato com esse texto tão importante da dramaturgia mundial, um saldo altamente positivo: apresentar o ator Gustavo de Araújo.

A produção é pequena, mas não modesta. No texto, Müller exclui o coro e foca a situação no diálogo entre apenas três personagens: Ulisses (Luciano Heidrich), Neoptólemo (Luciano Bisol) e Filoctetes (Gustavo de Araújo). No que se refere à interpretação dos atores, considerando o fato da peça ter sido apresentada em uma janela que se destina à apresentação de novos profissionais, encontram-se bons trabalhos diante de um texto tão duro, esse ainda mais rígido pela importância da retórica em sua encenação. Embora, o dizer dos diálogos careça de mais corporalidade e menos formalismo, é evidente que houve notável trabalho de interpretação em artistas que ainda convivem com sua própria inexperiência. O resultado é, apesar das adversidades, um bom trabalho de direção que se vê através da positiva forma como os três atores dispõem os corpos em cena: os pés bem firmes no chão, os joelhos flexionados e os ombros abertos, o que, em alguns momentos, faz com que as palavras pareçam sair mecânicas e, por isso, sem vida. Ressalta-se, sem dúvida, o fato de que isso raramente acontece em Gustavo de Araújo, que interpreta o protagonista, cujo único ponto negativo a ser levantado é que, em poucas ocasiões, o volume de sua voz é baixo demais, dificultando a boa assistência.

Araújo interpreta o protagonista em uma peça que dura quase duas horas. Suas falas são extensas e numerosas. Boa parte de seu texto é dito praticamente deitado no chão (o personagem fora picado por uma cobra nos pés) e seu figurino foi feito com cores pastéis. Ou seja, os desafios para um ator ainda em estágio de formação são muitos e, consequentemente, os seus méritos por tê-los transpostos são ainda maiores. O ator segura a plateia, mantém a atenção e exibe um resultado brilhante no uso do ritmo e da variação tonal, da exploração de marcas corporais de verossimilhança e de valorização das intenções.

Presente no texto, a aparição de palhaços no início e no entreatos é um dos pontos mais negativos da peça dirigida por Nólibos. Clown é um gênero interpretativo tão sério quanto a tragédia é enquanto gênero narrativo. Colocar dois atores em roupas de palhaços e estimulá-los a fazerem “brincadeiras” em cena faz a produção sair do “feito apesar das dificuldades” e ir para o “mal feito”. Intenção de Müller, a articulação entre a reflexão sobre ética proposta pelo texto e aquela proposta pelo jogo entre clowns não se cruza na produção de Nólibos pelo desequilíbrio existente na viabilização delas. Enquanto a tragédia é apresentada com louvor, as cenas dos clowns, nem de longe, são dignas dele. O constrangimento só não é maior do que diante das intervenções da banda Stella Can, que acontecem antes do primeiro e do segundo ato e no final da peça. O rock em inglês, cantado por três jovens garotas em roupas contemporâneas, não estabelece nenhuma possibilidade de articulação com a peça e permite pensar que a opção foi um aproveitamento da oportunidade da janela pública para mostrar o trabalho musical, o que seria extremamente negativo.

Para que a Guerra de Tróia seja vencida, é preciso que entrem em jogo as armas de Héracles (Hércules, em latim) e Filoctetes, que está isolado na Ilha de Lemnos, as detém. Buscá-las é o que move Ulisses e Neoptólemo, situação que permite pensar sobre a relação entre os homens e o poder (Levar Filoctetes para a guerra trará poder a Ulisses e a Neoptólemo?), os homens e os seus instrumentos (Quem é mais importante? Filoctetes ou as armas que ele tem?) e os fatos e as notícias sobre eles (O que aconteceu na Ilha de Lemnos não é o mesmo que será espalhado. Quais as implicações?). Por levantar essas questões, o espetáculo “Philoktetes”, com vários aspectos positivos acima levantados, consiste em um grande momento na execução desse projeto tão valoroso que é o Novas Caras. Parabéns.

*

Ficha técnica:

Autor: Heiner Müller
Direção: Paulina Nólibos
Assistência de Direção: Raquel Zepka
Elenco: Gustavo de Araujo, Luciano Bisol e Luciano Heidrich
Trilha Sonora: Stella Can: Baixo - Juliana Nólibos | Guitarra - Luiza Gressler | Bateria - Mariana Corbellini
Figurino: Paulina Nólibos e Evelyn Mandiar
Cenário: Grupo Núcleo
Iluminação: Lucca Simas e Fabrício Miranda
Produção: Gustavo de Araujo e Geórgia Manfrói

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