12 de nov. de 2011

A Canção de Assis (março de 2006)


Foto: divulgação

Ser feliz é ter alguém para descascar sua maçã


Uma história simples, quando bem contada, torna-se uma aventura recheada de boas sensações. Esse é o caso de “A Canção de Assis” que, para o nosso bem, segue em cartaz em Porto Alegre, palco de boas peças infantis. Uma história simples que merece a nossa atenção por ter conquistado antes a preocupação de todo um grupo de artistas envolvidos na prática de nos envolver. E conseguem! Graças, entre muitos, a São Francisco de Assis, o homem que conversava com pássaros. Encontramos aí o segredo do Grupo Farsa: tornar-nos pássaros para que possamos com eles conversar.

Poderíamos encontrar em “A Canção de Assis” apenas mais uma história de um menino que procura por alguém durante todo o texto até encontrá-lo no final. Também não seria injusto observar um musical infantil a mais na capital gaúcha. Ou ainda perceber nessa montagem mais um circo de técnicas que visam nos surpreender. No entanto, estaríamos, com isso, abdicando de toda a complexidade de uma produção que congrega tão belamente vários elementos bem situados. Tratemos cada um deles, enquanto tentamos descobrir, na parte, a essência do todo.

O elenco é formado por sete atores, que se alternam em muitos personagens. Durante toda a peça, os vemos trocando de roupa no fundo do palco, onde há araras e chapeleiras que nos dão visão da grandiosidade do que está por vir. Mas o espaço cênico é tão bem delimitado que, o que sentimos a partir da cena, prende a nossa atenção a ponto de chegarmos a conclusão de que não vale a pena ficar antecipando segredos do que ainda está por vir. Para isso, houve o cuidado da direção de manter sempre algum ator na linha intermediária entre o foco e o que podemos chamar de coxia aberta. Esse funciona como alguém que nos mostra onde deverá estar nosso olhar, nosso representante em palco, observando a história, como se ela estivesse sendo narrada e não mostrada. O tom de narração suspensa, produzido por esse efeito de intermediariedade, nos convida a alçar vôo pelos sentidos múltiplos discretamente utilizados na contagem da história.

Com a exceção de Cássio Schonarth, os atores são bonitos em cena. Os olhos brilham, os lábios sorriem, o corpo participa ativamente da ação, sendo ou não participante do momento dramático em questão. Excelente a preparação corporal de Sofia Schul que, interpretando, entre outras personagens, a malvada Corvina, situa-se como uma das melhores composições do elenco. Braços e pernas se movimentam ritmicamente bailando por entre os espaços do que é dito (e nem sempre falado) em cena. O mesmo pode se dizer de Cris Pereira e, em especial, de Lucas Krug, o expoente masculino de um grupo de ótimos atores. Os tipos bem característicos, ainda que baseados em estereótipos (como devem ser) são vivos e transmitem, além de plástica, muita sonoridade ao texto. Destaca-se, entre todos, a doce figura de Simone De Dordi, que elevando a construção tipológica dos outros atores ao nível da profundidade estética, emociona o público com Pitoco, protagonista da história, muito bem interpretado. Cássio, ainda que exibindo corporalmente preocupação em excesso com um resultado que enfim não lhe agrada, não entra na história, não dialoga com demais. Falha também é a preparação corporal de Marcos Chaves e Aline Sokolovsky, cujas intepretações não alcançam o nível estabelecido por Schul, Pereira, Krug e Dordi, ainda que não deixem a desejar.

As possibilidades deixadas por Júlio Fischer, autor gaúcho radicado em São Paulo desde os anos 60, atualmente um dos autores do global O Sítio do Pica Pau Amarelo, foram maestralmente aproveitadas por Gilberto Fonseca, também diretor de Os Farsantes e A princesa engasgada. A transformação de Jeremias em um boneco manipulável, embora o texto de Fischer indique um ator, é uma audaciosa opção que representa a coragem do diretor em apostar numa idéia duvidosa. Meses depois da temporada de estréia, Jeremias torna-se uma das características mais marcantes da produção que merece os elogios de uma platéia inteligente e sensível. A interposição de momentos líricos em meio à cenas cômicas é outra ação perigosa. Mas, embora a iluminação seja um problema em muitos momentos, atos como o primeiro encontro de Pitoco e Jeremias, a cachoeira de Pitoco e Francisco, a descolagem da estrela na noite e os carinhos trocados entre o burro e o menino são, sem qualquer dúvida, imagens que permanecem na retina.

Ao percorrer a Itália em busca de Jeremias, o público é envolvido por muitas situações interessantes. A cena do mercado público é um exemplo delas, mas há outras, como um cavaleiro de armadura de ferro, senhoras em seus afazeres, bêbados vendo pessoas que voam e o próprio sol que desce à terra para falar com São Francisco. Enfim, um carretel de quadros tão bem compostos que tornam difícil, mas implacável, a avaliação sobre a perda de ritmo que a história adquire na junção de todos eles. Mesmo bonita, a dramaturgia não se sustenta por tanto tempo. A montagem, cuja duração torna-se longa demais, permite que esqueçamos do enredo básico: a busca de Jeremias por Pitoco. E, quando essa busca se resolve, também é, em cena, pobre demais para o todo o enredo construído com tanta precisão. O aparecimento de Jeremias, na casa do fidalgo, imediatamente após uma oração de Francisco, é algo que decepciona, que perde-se por entre tanta criatividade exposta ao longo de todo o espetáculo. É o pecado pelo excesso, que esse grupo comete na ânsia de, como diz Krug em cena, “mostrar seu talento”, que faz com que exijamos um final contado de uma forma mais surpreendente.

Se por um lado figurinos e adereços constroem um espetáculo a parte, é na trilha sonora que se encontra o que há de melhor em A Canção de Assis. As músicas são maravilhosamente bem interpretadas pelo conjunto de atores, o que engrandece esta que é a mais recente montagem do Grupo Farsa. Fernanda Beppler e Lucas Krug, criadores das trilhas, são dignos de aplausos não por uma, mas por todas as canções, destacando a trilha tema, a música da solidão de Pitoco e a engraçada canção do caminho, interpretada pelo conjunto de atores utilizando chapéus de palha. Essa citação aleatória de músicas, no entanto, não quer representar aqui uma escolha entre as melhores canções de Beppler e Krug, mas destacar momentos especiais na narrativa, como quando somos apresentados aos contadores da história. A música tema domina o ambiente e enche os nossos sentidos de outros significados que não os da nossa vida fora dali, permanecendo em nossos ouvidos por um bom tempo. Também, quando no roubo de Jeremias, a canção “Onde está você, meu amigo?” embala o olhar de Pitoco que busca seu melhor amigo. Fernanda Beppler, que outrora fora atriz do espetáculo, é a responsável também pela direção musical, permitindo ao público fruir de belos solos instrumentais e vocais dessa troupe corajosa, criativa e cheia de talento.

Entre tantas as possibilidades, a indicação de Assis chegou ao menino através de dois bêbados, que depois são os únicos a notar o vôo de Pitoco e Francisco. Embebidos pois de tantas qualidades, deixemo-nos embalar pela canção que “iluminou com seu farol o nosso canto, o nosso corpo, o nosso gesto, a nossa graça e nos trouxe a esta praça para falar de amor.” E, transformados em pássaros, possamos ouvir a voz de Assis e o talento (e a ousadia) do Grupo Farsa.

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Ficha técnica:

Elenco: Simone De Dordi, Cássio Shonarth, Fernanda Beppler, Lucas Krug, Aline Sokolovsky e Sofia Schul. Direção musical: Fernanda Beppler
Trilha sonora original: Fernanda Beppler e Lucas Krug
Figurinos: Leopoldo Schineider
Direção, Cenário e Iluminação: Gilberto Fonseca
Texto: Júlio Fischer
Produção: Grupo Farsa

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