A bilha quebrada
Foto: Júlio Appel
Muito a aplaudir
“A bilha quebrada”, primeiro espetáculo do Coletivo Confúcios e Confusos, é um dos melhores espetáculos gaúchos de teatro adulto de 2011. O trabalho, cuja direção é de Clóvis Massa, é resultado do prêmio de incentivo à pesquisa teatral no Teatro de Arena. Com alterações sutis, o texto se apresenta “livremente inspirado” na obra homônima do dramaturgo alemão Heinrich von Kleist (1777-1811), escrito em 1806 e encenado pela primeira vez dois anos depois.
Resistindo ao romantismo alemão, em voga no teatro e na literatura na época do seu lançamento, a obra se apresenta como uma comédia ainda com bastante influência do gênero farsesco. Com isso se quer apontar que a situação dramática privilegia a cristalização das figuras que, estando enrijecidas, são responsáveis pela evolução rápida da narrativa no processo de desenredamento das tramas e subtramas em que a história se estrutura. Em um tribunal, o Juiz, seu Escrivão e o Meirinho aguardam a chegada de um Desembargador. Quando esse chega, atende-se ao primeiro caso do dia: o caso da bilha (jarra) quebrada. Dona Martha é mãe de Eva que é noiva de Ruprecht que é sobrinho de Brígida. A peça de cerâmica se espatifara no chão quando Ruprecht encontrou um homem no quarto de Eva em certa noite passada. Não se sabe quem é esse homem, mas, desde então, o noivado foi desfeito. Eva, então, está triste pelo fim do namoro, Martha, por sua vez, está revoltada com a sua relíquia quebrada e Ruprecht afirma não ser o responsável pelo desastre, mas quer saber quem o foi. Brígida, enfim, é chamada para testemunhar e o Desembargador acompanha a resolução no intuito de avaliar o procedimento do Juiz, cujo cargo é ambicionado pelo Escrivão. Como se vê, trata-se de um texto em que todos os personagens são movidos por conflitos internos que os ligam ao todo da narrativa por sua própria natureza (egoísmo, sensibilidade, ambição, avareza, etc), essa de aparência independente da situação específica em que todos se encontram. “A bilha quebrada”, assim, está próxima, enquanto farsa, de sua ascendente Commedia Dell Arte, uma vez que, no texto de meados do séculos XIX, os personagens do gênero moderno-renascentista podem ser facilmente encontrados: o casal de Enamorados (Eva e Ruprecht), o Brighella (o Escrivão Licht), a Colombina (o Meirinho), o Dottore (o Desembargador Walter) e o Pantaleão (o Juiz Adão e a Dona Marta), todos pertencentes à tradição teatral italiana. Codificados e com muitas indicações que são necessárias (e bem vindas) à boa fruição de uma obra desse tipo, a condução nesse sentido “facilita” a vida do espectador na medida em que o dispensa de maiores apresentações acerca de quem participa da história, convidando a plateia para que se vá direto ao ponto, ou seja, a história em si.
Os poucos pontos negativos dessa montagem de “A bilha quebrada” dizem respeito ao desequilíbrio do que se vê em termos de construção de personagem: dos oito atores que compõem o elenco, apenas três exibem um bom trabalho. Larissa Tavares é uma delas ao dar a ver uma Eva cheia de arroubos sentimentais, olhos esbugalhados e marcas de frivolidade. Porque, em vários momentos, mantém uma postura muito pesada, próxima do realismo até e, nesse sentido, distante da farsa, Marcelo Mertins, o par que contracena com Tavares não obtém tantas vezes o mesmo bom resultado, faltando-lhe mais afetações e mais histerismos próprios do código que seu personagem representa. Claudia Lewis, numa ótima performance, é forte, presente, viva em cena. O egoísmo da sua personagem é manifestadamente claro: ela não quer saber da felicidade da filha (trata-se de uma farsa e não de uma peça realista, repito), mas exige que o culpado pela quebra de seu tesouro seja encontrado e punido. Martha é, portanto, o par perfeito para contracenar com o Juiz Adão, personagem brilhantemente interpretado por Luís Franke, sem dúvida, o melhor desempenho da produção. Adão é egoísta, mas tão simples quanto Martha. Ambos, querendo apenas ver o seu problema resolvido, não têm sucesso como esquematizadores de trapaças, não sendo ardilosos, como poderia ser o Escrivão. Adão precisa se livrar do seu antagonista, o Desembargador Walter que, nessa produção, é interpretado por Marcelo Crawshaw, e Franke concretiza essa intenção com exímio talento e técnica, produzindo na assistência interesse, riso, divertimento, prazer estético ímpar. No entanto, a construção de Crawshaw (Walter), assim como a de Ariane Mendes (Dona Brígida) e de Luciano Pieper (o escrivão Licht) estão apagadas, frágeis, fracas. O primeiro sustenta o personagem apenas pelo arregalamento dos olhos, a segunda por uma leve curvatura na coluna e o terceiro deixa ver apenas um sutil sorriso ao proferir suas falas, sem mais marcas que sejam resultados de digna exploração do universo que eles poderiam representar. Renata Teixeira, que interpreta o Meirinho, perde vários momentos cômicos, mas é responsável por alguns, o que é positivo.
Com algumas baixas, Clovis Massa apresenta à capital gaúcha uma produção cheia de méritos. Os figurinos de Rô Cortinhas estão excelentes. Documentando uma época distante, em todos os detalhes (embora falte uma aliança na mão da viúva Martha), a proposta concentra, isto é, dá centro para a narrativa, concordando com a codificação dos personagens, como acima se disse. A concepção de Marco Fronckoviak para o cenário, bem como a de Cláudia De Bem para a iluminação, explora o universo do Teatro de Arena, valorizando as possibilidades que o espaço oferece de forma a engrandecer a produção. A trilha sonora de Marcão Acosta age positivamente no mesmo sentido: dar leveza para a história, agilidade, rapidez. Entre todos os signos plásticos, o que atinge o melhor resultado é a maquiagem de Margarida Leoni Peixoto. Os “machucados” na cabeça do Juiz Adão estão perfeitos, parecendo sangrar ao longo da evolução da narrativa através do contato do suor do ator Luís Franke com a tinta utilizada. Responsável geral pela produção, é de Clóvis Massa o parabéns final por um espetáculo tão bem cuidado, apesar de alguns deslizes isolados, que, perfeitamente, podem oferecer outros resultados melhores no caminhar das muitas temporadas que a montagem merece ter.
*
Ficha Técnica:
Montagem do Coletivo Confúcios e Confusos
Texto livremente na obra de Heinrich von Kleist
Direção: Clóvis Massa
Direção Musical e Trilha Sonora: Marcão Acosta
Cenografia: Marco Fronckowiak
Assistente de Cenografia: Yara Balboni
Objetos de Cena: Maura Sobrosa
Iluminação: Cláudia de Bem
Figurinos: Rô Cortinhas
Maquiagem: Margarida Leoni Peixoto
Fotos: Julio Appel
Produção: MS2 Produtora – Sandra Narcizo
Elenco: Luís Franke (Juiz Adão), Luciano Pieper (Escrivão Licht), Renata Teixeira (Meirinho), Marcello Crawshaw (Desembargador Walter), Cláudia Lewis (Dona Marta Rull), Larissa Tavares (Eva), Marcelo Mertins (Ruprecht) e Ariane Mendes (Dona Brígida).
Muito a aplaudir
“A bilha quebrada”, primeiro espetáculo do Coletivo Confúcios e Confusos, é um dos melhores espetáculos gaúchos de teatro adulto de 2011. O trabalho, cuja direção é de Clóvis Massa, é resultado do prêmio de incentivo à pesquisa teatral no Teatro de Arena. Com alterações sutis, o texto se apresenta “livremente inspirado” na obra homônima do dramaturgo alemão Heinrich von Kleist (1777-1811), escrito em 1806 e encenado pela primeira vez dois anos depois.
Resistindo ao romantismo alemão, em voga no teatro e na literatura na época do seu lançamento, a obra se apresenta como uma comédia ainda com bastante influência do gênero farsesco. Com isso se quer apontar que a situação dramática privilegia a cristalização das figuras que, estando enrijecidas, são responsáveis pela evolução rápida da narrativa no processo de desenredamento das tramas e subtramas em que a história se estrutura. Em um tribunal, o Juiz, seu Escrivão e o Meirinho aguardam a chegada de um Desembargador. Quando esse chega, atende-se ao primeiro caso do dia: o caso da bilha (jarra) quebrada. Dona Martha é mãe de Eva que é noiva de Ruprecht que é sobrinho de Brígida. A peça de cerâmica se espatifara no chão quando Ruprecht encontrou um homem no quarto de Eva em certa noite passada. Não se sabe quem é esse homem, mas, desde então, o noivado foi desfeito. Eva, então, está triste pelo fim do namoro, Martha, por sua vez, está revoltada com a sua relíquia quebrada e Ruprecht afirma não ser o responsável pelo desastre, mas quer saber quem o foi. Brígida, enfim, é chamada para testemunhar e o Desembargador acompanha a resolução no intuito de avaliar o procedimento do Juiz, cujo cargo é ambicionado pelo Escrivão. Como se vê, trata-se de um texto em que todos os personagens são movidos por conflitos internos que os ligam ao todo da narrativa por sua própria natureza (egoísmo, sensibilidade, ambição, avareza, etc), essa de aparência independente da situação específica em que todos se encontram. “A bilha quebrada”, assim, está próxima, enquanto farsa, de sua ascendente Commedia Dell Arte, uma vez que, no texto de meados do séculos XIX, os personagens do gênero moderno-renascentista podem ser facilmente encontrados: o casal de Enamorados (Eva e Ruprecht), o Brighella (o Escrivão Licht), a Colombina (o Meirinho), o Dottore (o Desembargador Walter) e o Pantaleão (o Juiz Adão e a Dona Marta), todos pertencentes à tradição teatral italiana. Codificados e com muitas indicações que são necessárias (e bem vindas) à boa fruição de uma obra desse tipo, a condução nesse sentido “facilita” a vida do espectador na medida em que o dispensa de maiores apresentações acerca de quem participa da história, convidando a plateia para que se vá direto ao ponto, ou seja, a história em si.
Os poucos pontos negativos dessa montagem de “A bilha quebrada” dizem respeito ao desequilíbrio do que se vê em termos de construção de personagem: dos oito atores que compõem o elenco, apenas três exibem um bom trabalho. Larissa Tavares é uma delas ao dar a ver uma Eva cheia de arroubos sentimentais, olhos esbugalhados e marcas de frivolidade. Porque, em vários momentos, mantém uma postura muito pesada, próxima do realismo até e, nesse sentido, distante da farsa, Marcelo Mertins, o par que contracena com Tavares não obtém tantas vezes o mesmo bom resultado, faltando-lhe mais afetações e mais histerismos próprios do código que seu personagem representa. Claudia Lewis, numa ótima performance, é forte, presente, viva em cena. O egoísmo da sua personagem é manifestadamente claro: ela não quer saber da felicidade da filha (trata-se de uma farsa e não de uma peça realista, repito), mas exige que o culpado pela quebra de seu tesouro seja encontrado e punido. Martha é, portanto, o par perfeito para contracenar com o Juiz Adão, personagem brilhantemente interpretado por Luís Franke, sem dúvida, o melhor desempenho da produção. Adão é egoísta, mas tão simples quanto Martha. Ambos, querendo apenas ver o seu problema resolvido, não têm sucesso como esquematizadores de trapaças, não sendo ardilosos, como poderia ser o Escrivão. Adão precisa se livrar do seu antagonista, o Desembargador Walter que, nessa produção, é interpretado por Marcelo Crawshaw, e Franke concretiza essa intenção com exímio talento e técnica, produzindo na assistência interesse, riso, divertimento, prazer estético ímpar. No entanto, a construção de Crawshaw (Walter), assim como a de Ariane Mendes (Dona Brígida) e de Luciano Pieper (o escrivão Licht) estão apagadas, frágeis, fracas. O primeiro sustenta o personagem apenas pelo arregalamento dos olhos, a segunda por uma leve curvatura na coluna e o terceiro deixa ver apenas um sutil sorriso ao proferir suas falas, sem mais marcas que sejam resultados de digna exploração do universo que eles poderiam representar. Renata Teixeira, que interpreta o Meirinho, perde vários momentos cômicos, mas é responsável por alguns, o que é positivo.
Com algumas baixas, Clovis Massa apresenta à capital gaúcha uma produção cheia de méritos. Os figurinos de Rô Cortinhas estão excelentes. Documentando uma época distante, em todos os detalhes (embora falte uma aliança na mão da viúva Martha), a proposta concentra, isto é, dá centro para a narrativa, concordando com a codificação dos personagens, como acima se disse. A concepção de Marco Fronckoviak para o cenário, bem como a de Cláudia De Bem para a iluminação, explora o universo do Teatro de Arena, valorizando as possibilidades que o espaço oferece de forma a engrandecer a produção. A trilha sonora de Marcão Acosta age positivamente no mesmo sentido: dar leveza para a história, agilidade, rapidez. Entre todos os signos plásticos, o que atinge o melhor resultado é a maquiagem de Margarida Leoni Peixoto. Os “machucados” na cabeça do Juiz Adão estão perfeitos, parecendo sangrar ao longo da evolução da narrativa através do contato do suor do ator Luís Franke com a tinta utilizada. Responsável geral pela produção, é de Clóvis Massa o parabéns final por um espetáculo tão bem cuidado, apesar de alguns deslizes isolados, que, perfeitamente, podem oferecer outros resultados melhores no caminhar das muitas temporadas que a montagem merece ter.
*
Ficha Técnica:
Montagem do Coletivo Confúcios e Confusos
Texto livremente na obra de Heinrich von Kleist
Direção: Clóvis Massa
Direção Musical e Trilha Sonora: Marcão Acosta
Cenografia: Marco Fronckowiak
Assistente de Cenografia: Yara Balboni
Objetos de Cena: Maura Sobrosa
Iluminação: Cláudia de Bem
Figurinos: Rô Cortinhas
Maquiagem: Margarida Leoni Peixoto
Fotos: Julio Appel
Produção: MS2 Produtora – Sandra Narcizo
Elenco: Luís Franke (Juiz Adão), Luciano Pieper (Escrivão Licht), Renata Teixeira (Meirinho), Marcello Crawshaw (Desembargador Walter), Cláudia Lewis (Dona Marta Rull), Larissa Tavares (Eva), Marcelo Mertins (Ruprecht) e Ariane Mendes (Dona Brígida).
1 Comentário:
Não quero comentar sobre a peça. Não vi. Está longe. Sou de Belo Horizonte. Quero comentar que adorei seu blog. Está no meu "favoritos".
Agradeço! Muito!
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