23 de out. de 2011

i-Mundo


Foto: Tiemy Saito

Deixa a desejar

“i-Mundo” é o segundo espetáculo do Grupo Mototóti e, como o primeiro, é um espetáculo teatral de rua dirigido tanto para crianças como para adultos. Carlos Alexandre e Fernanda Beppler interpretam dois alienígenas que, ao chegar ao Planeta Terra, se espantam ao ver que, em 2011, o mundo não acabou, o que deveria ter acontecido em 2000. Com direção de Juliana Kersting, a produção apresenta alguns pontos positivos, mas se estrutura, principalmente no que diz respeito à dramaturgia, de forma negativa em vários aspectos.

É bastante interessante a opção da chegada dos atores ao espaço onde a peça será apresentada. Carlos Alexandre e Fernanda Beppler, interpretando Obs e Abs, caminham pelo parque usando Kangoo Jumps, o que exige dos intérpretes movimentos que os auxiliam na composição dos personagens, tocando instrumentos musicais, cantando e convidando o público a seguí-los até um determinado lugar. Como não há nenhuma marcação, delimitação ou sinal de onde será esse lugar, em termos conceituais, é possível reconhecer a intenção de construir o espetáculo de forma fluída, livre, apoiado no contado direto com o público. Escolhido o espaço, Carlos Alexandre estabelece a célebre roda do teatro de rua com uma corrente amarela e preta, infelizmente contradizendo a elogiável intenção e marcando o que acontecerá muitas vezes ao longo do espetáculo: a autocontradição.

Obs e Abs, mais uma vez de forma elogiável, falam um idioma desconhecido, o que desperta positivamente o interesse do público que compreende o que eles comunicam apenas pelas excelentes interpretações de ambos os atores. Estabelecida a roda e já com o espetáculo em andamento, a dupla de personagens tem dificuldade de reconhecer o que vêem. Um livro com gravuras aparece e, através dele, se identificam os homens como habitantes do planeta i-Mundo, isto é, o Planeta Terra. Os terráqueos, assim, são chamados de i-Mundanos, palavra que a dupla passa a utilizar imediatamente depois de reconhecer que o idioma falado aqui é a língua portuguesa. A falta de cenário confere ao diálogo a necessidade de estabelecer um lugar para esse encontro dos personagens com seus interlocutores, sem o qual não é possível dar início à história. É então que ficamos sabendo que estamos em 2011 no poluído Planeta Terra. Dentre os méritos do espetáculo, a montagem traz como tema a conscientização ecológica, além de uma nova postura acerca do relacionamento humano, cuja pauta não deve ser baseada no dinheiro, mas na valorização da vida, sobretudo a humana. O Grupo Mototóti está de parabéns por propor o debate, ainda que essa análise faça ver a inconsistência de alguns instrumentos utilizados para o estabelecimento da reflexão proposta.

Em primeiro lugar, o Parque Farroupilha aparentemente não é o lugar apropriado para a encenação desse espetáculo por ser um lugar onde a natureza reina majestosa e segura. Diferente do que aconteceria numa rua movimentada no centro, não há lixo, mas há flores; não há buzinas e prédios cinzentos, mas árvores e barulho de pássaros; não há pessoas apressadas em trabalhar e pagar contas, mas grupos e solitários de todas as idades relaxando ao sol. Um casal de atores vestido totalmente de preto, com expressões carregadas na face e um discurso pesado sobre a poluição, o egoísmo e o fim do mundo parece inconveniente. E chato.

Ainda em termos de dramaturgia, o espetáculo se torna negativamente moralista nas cenas do Funk e da Igreja Evangélica porque denigre o direito de livre expressão artística e religiosa, opinando verticalmente sobre essas manifestações. Por fim, a peça se apresenta autocontraditória em várias ocasiões, como, por exemplo: a) se Abs e Obs são alienígenas, como eles podem julgar o que é boa bebida e boa comida para um i-Mundano? O que é bom para um i-Mundano não necessariamente seria bom para um alienígena, não? b) Se os faraós eram tataravós de Abs e de Obs, por que chamam os i-Mundanos contemporâneos de “exemplares”, considerando que os egípcios também eram humanos? c) Depois de um longo discurso sobre a preservação do ambiente, qual o sentido de abandonar o espaço cênico deixando no chão do parque vários papéis jogados e uma garrafa d’água perdida?

Em segundo lugar, “i-Mundo” apresenta uma história que começa com a chegada dos alienígenas, avança e se perde no estabelecimento constante da situação inicial e não evolui para um desenvolvimento, tendo um obscuro e esquisito final. Ou seja, em termos teóricos, é possível concluir que a peça começa como narrativa, cresce como dissertação (uma crítica à sociedade) e, de forma pobre, termina como narrativa novamente. Para os adultos, a história é superficial demais. Para as crianças, a tese e seus argumentos são pesados demais.

Em terceiro lugar, em se tratando da forma, a passagem do chapéu (marca do teatro de rua que acontece no fim das apresentações) acontece estranhamente no meio da peça, quando também ocorre o recolhimento da corrente, apagando a roda cênica e criando a dúvida a respeito do porquê de sua utilização até aquele momento.

Como aspecto extremamente positivo, há que se falar da trilha sonora. Em mais um espetáculo, o trabalho de Fernanda Beppler como compositora é excelente. “O Príncipe que Nasceu Azul”, “A Canção de Assis”, “O Homem da Cabeça de Papelão”, “O Vendedor de Palavras” e, agora, “i-Mundo” são espetáculos que tiveram e têm seu ponto alto na criação e na execução da trilha, um trabalho que carece de maior reconhecimento e merecido aplauso.

Outro aspecto bastante positivo da produção são os figurinos. Cumprindo a proposta já tratada, ambos os atores vestem trajes práticos e ricos ao mesmo tempo, caracterizando os personagens, elevando positivamente as qualidades da produção e atendendo à concepção para a qual foram criados.

Uma vez que o teatro se difere da linguagem verbal porque cria sua própria linguagem ao falar, diferente da segunda que se manifesta através da atualização de uma estrutura anterior a ela, a autocontradição emperra a adequada fruição. Se, no conforto do palco italiano, uma peça em que o espectador tenha problemas em se situar chegue mais dificilmente aos elogios, o caso é ainda pior na rua. Porque as boas intenções não se manifestam através de bons usos dos instrumentos dispostos, “i-Mundo” deixa a desejar ao público fiel do Mototóti.

*

Ficha técnica:
Concepção e atuação: Carlos Alexandre e Fernanda Beppler
Dramaturgia: Carlos Alexandre
Direção: Juliana Kersting
Trilha Sonora e Criação de Figurinos: Fernanda Beppler
Execução: Carol Puccini, Geluza Tagliaro e Sônia Krug.
Fotorafias: Tiemy Saito
Identidade Visual, Produção e Realização: Grupo Mototóti

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