Platero e Eu
O silêncio personagem
Já faz um século que os atores quebram a quarta parede, se abrindo para o público no sentido de incluí-lo quase fisicamente no palco. Significa estender o palco para além das poltronas, ir para a platéia. Em Porto Alegre, é bem difícil lembrar de uma produção que não faça isso. Sonho de uma noite de verão, Bailei na Curva e Pílulas de Vatapá são alguns poucos exemplos de produções que mantém o público no lugar de público, os atores onde a história é exposta. Taís Ferreira e Thiago Colombo não quebram a quarta parede em “Platero e Eu”. Nós o fazemos.
O silêncio.
O silêncio é um personagem, mas eu já não saberia dizer se do que acontece no palco ou se do que não acontece na platéia.
No palco, Taís corporifica os poemas de Juan Ramón Jimenez (1881 – 1959), bailando ao construir imagens, pulsando ao sustentar movimentos. Com uma voz grave, mas um corpo tecnicamente ensaiado, a atriz faz ver o que vê: o campo, o burro Platero, a vila, os personagens. Veste verde e contrasta com vermelho (Raquel Capelletto), como uma macieira carregada, um gramado florido, um quadro bucólico de quem pintou a elegia mais famosa deste importante escritor andaluz. Colombo traz a sonoridade de Mario Castelnuovo-Tedesco (professor de quem fez Victor ou Vitoria (Henry Mancini) e Simplismente Millie (Bernstein)) que nos coloca naquele lugar onde, talvez, sempre cosmopolitas, nunca estivemos: uma varanda iluminada por um lampião a ouvir grilos e causos enquanto se fuma um bom palheiro. Voz e Violão ocupam seu espaço que não é o todo, como também se comporta a luz de Fernando Ochoa num dos trabalhos mais bonitos que eu vi nesse verão porto-alegrense. Com cores e focos, Ochoa valoriza a escuridão. Com ritmo e vibração, atriz e músico valorizam o silêncio.
Na platéia, a paz se instala. O sono quer entrar, embora não tenha recebido convite. O sono estabelece o sonho e é de sonho que vive a ação de “Platero e Eu”. O sonho de um louco a conversar com um burro, a ler para esse burro, a viver com ele. De visitar paisagens, de ouvir a filha do carvoeiro a cantar para irmão, de ver as crianças vestidas em fantasias de carnaval. Um sonho feito de muitos, sem ligação um com o outro. Um sonho de silêncios, sem interrogações. Não queremos saber o que vai acontecer, apenas estamos ali. A coisa acontece. A platéia não reage porque sua reação é a não-reação. “Platero e Eu” é um espetáculo de se contemplar, como uma cachoeira que dá gosto de olhar, mesmo que o cair d’àgua seja o mesmo de manhã até a noite e o dia seguinte. Nossos movimentos levemente barulhentos nas poltronas do Câmara ofendem o silêncio. O silêncio nosso que quebra a quarta parede e invade o palco, torna platéia o tablado, torna assistência aqueles que só queriam ser atores. É de se ver o Platero trotando e trotando e trotando na sua vida de trotar e nada mais.
É pelo silêncio que reconhecemos as sílabas. É por ele que as palavras se formam e a poesia, tão bem vinda, abandona a literatura e vira corpo, teatro, primeira e quarta parede, tablado e poltrona, luz e sombra. Silêncio.
FICHA TÉCNICA
Texto: Juan Ramón Jiménez (1881-1959)
Título original 1ª edição: Platero y Yo (1914)
Narradora: Taís Ferreira
Composição: Mario Castelnuovo-Tedesco (1895-1968)
Título original composição: Platero y Yo, op. 190 (1960)
Violonista: Thiago Colombo
Figurinos: Raquel Cappelletto
Concepção iluminação: Fernando Ochôa
Operação luz: Fernando Ochôa e Fernando Pecoits
Programação gráfica: Daniel Ferreira da Silva
Fotografias: Daniel Ferreira da Silva e Kiran
VTs: Catraca Filmes
Gravação DVD: Estúdio MóvelProdução e divulgação: Taís Ferreira
3 Comentários:
Oi Rodrigo
Interessante este ponto de vista: em um espetáculo em que a voz (a palavra) e a(s) sonoridade(s) do instrumento estão no centro da proposta, o silêncio como personagem!
Mas eu tb sinto isso fazendo: é o silêncio quem fala, em diveros momentos.
Coloquei no blog do Platero:
http://plateroeeu.blogspot.com/
Abçs, Taís
Lindo o texto. Quase vejo o espetáculo...
Passei a ler o blog mas, preciso confessar que, como estou distante dos fatos, só posso analisar o texto em si.
Adoro a arte da contemplação do silêncio, seja na teatro, no cinema, na pintura, na escultura, ou na vida. Os orientais a entendem tão bem e há milênios. Nós, do ocidente, das cidades cosmopolitas, urgentes, e apressadas, nunca nos demos esse tempo. Mas, quando esse pensamento se torna consciente, no que representa ou na realidade, parece que o primeiro passo foi dado.
Só não gosto quando esse movimento traz o sono em nós. Talvez aí o que se vê não nos toca como gostaríamos, ou porque estamos cansados da vida ou porque aquela leitura, definitivamente, não interessa.
That´s all folks!
Postar um comentário