O Bairro
A fragilidade*
Há um personagem que tem uma janela com cortinas. As duas partes da cortina se encontram no meio da janela. Em uma parte, há botões. Em outra, há as respectivas casas. Esse personagem, quando quer ver o mundo através de sua janela, abre a cortina, desabotoando casa por casa. Então, abre uma parte. Depois, outra. E vê.
Fica mais claro falar sobre o ritual de ir ao teatro, falando sobre ir ao cinema. Não é possível ver teatro em casa, mas é possível ver bons filmes na TV 60 polegadas da sala. Mesmo assim, vai-se ao cinema. É arrumar-se. Sair. Transportar-se. Chegar. Pegar ingresso. Escolher lugar. Sentar e esperar. Casa por casa, o corpo prepara-se para o que vai ver e exige, por isso, algo que lhe agrade tanto na tela, como no palco. A mente repousa. O espectador faz um pacto. E as luzes se acendem.
“O Bairro”, cuja direção é de Marco Fronchetti, oferece uma visão para quem, pacienciosamente, desabotoa a cortina. Engana-se quem pensa que só se vê quando as duas partes da cortina já estão abertas. Desde o primeiro botão, já sabemos que um bom espetáculo está por vir: a luz na parede negra de tijolos, a música ambiente, o cartaz, as fotos, o boca-boca. Ver e visualizar não são tão distantes assim.
*
Há um personagem que anda carregando uma vara paralela ao chão. Ele pega bem no meio da vara e é hábil em mantê-la paralela. Quem consegue o feito merecia ganhar um milhão. Sim, não é fácil manter uma vara paralela ao chão. Num suspiro, ela faz um ângulo e, deixando de ser paralela, torna-se perpendicular.
O que mais me chama a atenção em termos de linguagem teatral, de especificidade do teatro é a fragilidade que ele oferece ao seu público. A fragilidade de um corpo exposto. Um corpo vivo e em movimento num espaço e num tempo. E, de alguma forma, dizendo algo a você. O ator está paralelo ao público e, quando é hábil, não está perpendicular a nós. Direções que conseguem manter o acordo feito do início ao fim, fazendo que mantenhamos nossa atenção presa no palco sem que duvidemos da encenação, ou que recorramos ao ar condicionado, ao ajuste na poltrona ou ao relógio de pulso, mereciam um milhão. Com exceção da cena do Absinto em que as repetições tornam evidente um palavrório sem corpo, o espetáculo “O Bairro” desfila levemente pela tortuosa linha da palavra presa ao corpo de forma sublime. Fruto da literatura de Gonçalo Tavares, a teatralidade dessa produção não recusa a literariedade, mas anda em paralelo a ela, tanto quanto a nós.
*
Há um personagem que, todos os dias, sai à rua com um balão de ar. A diferença entre o ar de dentro e o ar de fora do balão é que o primeiro está envolto por uma cor. A cada novo dia, o personagem veste uma parte do nada de uma cor diferente. No sábado, era azul.
A arbitrariedade da palavra que veste a imagem é a cor azul. O teatro bem pode ser outra cor que veste uma parte do nada. A outra parte anda nua nas nossas cabeças a interpretar, a reagir, a receber o que é dito pelo grupo de atores vestidos impecavelmente num palco também belamente composto. A fragilidade, tema da peça, está na cor. E quando falo em peça, lembro que peça significa parte. O todo do teatro seria, talvez, a união do que acontece em cena com o que acontece em cada uma das pessoas do público. Eu só vejo uma peça. E uma peça que me fala de uma parte de mim.
*
Há um personagem que construiu uma ponte. Mas, segundo ele, faltaram dois metros para que o que saiu de um lado chegasse ao outro. Mesmo que, para mim, ponte só é ponte quando une dois lados, o que não é o caso, é assim que ele chama o feito. Se o que escrevo é crítica ou comentário, se o que se vê em cena é mais ou menos teatro, se o que fazemos é melhor ou pior pra nós, isso só quem sabe é quem vive. Não se pára para viver quando se vive em paralelo. Na platéia de Fronchetti, eu olho para o paralelo. Olho e vejo outro personagem.
* Crítica também publicada na Revista Informe C3 #2.
*
Há um personagem que carrega terra de um lugar para o outro numa colherinha de chá.
Há um personagem que tem uma janela com cortinas. As duas partes da cortina se encontram no meio da janela. Em uma parte, há botões. Em outra, há as respectivas casas. Esse personagem, quando quer ver o mundo através de sua janela, abre a cortina, desabotoando casa por casa. Então, abre uma parte. Depois, outra. E vê.
Fica mais claro falar sobre o ritual de ir ao teatro, falando sobre ir ao cinema. Não é possível ver teatro em casa, mas é possível ver bons filmes na TV 60 polegadas da sala. Mesmo assim, vai-se ao cinema. É arrumar-se. Sair. Transportar-se. Chegar. Pegar ingresso. Escolher lugar. Sentar e esperar. Casa por casa, o corpo prepara-se para o que vai ver e exige, por isso, algo que lhe agrade tanto na tela, como no palco. A mente repousa. O espectador faz um pacto. E as luzes se acendem.
“O Bairro”, cuja direção é de Marco Fronchetti, oferece uma visão para quem, pacienciosamente, desabotoa a cortina. Engana-se quem pensa que só se vê quando as duas partes da cortina já estão abertas. Desde o primeiro botão, já sabemos que um bom espetáculo está por vir: a luz na parede negra de tijolos, a música ambiente, o cartaz, as fotos, o boca-boca. Ver e visualizar não são tão distantes assim.
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Há um personagem que anda carregando uma vara paralela ao chão. Ele pega bem no meio da vara e é hábil em mantê-la paralela. Quem consegue o feito merecia ganhar um milhão. Sim, não é fácil manter uma vara paralela ao chão. Num suspiro, ela faz um ângulo e, deixando de ser paralela, torna-se perpendicular.
O que mais me chama a atenção em termos de linguagem teatral, de especificidade do teatro é a fragilidade que ele oferece ao seu público. A fragilidade de um corpo exposto. Um corpo vivo e em movimento num espaço e num tempo. E, de alguma forma, dizendo algo a você. O ator está paralelo ao público e, quando é hábil, não está perpendicular a nós. Direções que conseguem manter o acordo feito do início ao fim, fazendo que mantenhamos nossa atenção presa no palco sem que duvidemos da encenação, ou que recorramos ao ar condicionado, ao ajuste na poltrona ou ao relógio de pulso, mereciam um milhão. Com exceção da cena do Absinto em que as repetições tornam evidente um palavrório sem corpo, o espetáculo “O Bairro” desfila levemente pela tortuosa linha da palavra presa ao corpo de forma sublime. Fruto da literatura de Gonçalo Tavares, a teatralidade dessa produção não recusa a literariedade, mas anda em paralelo a ela, tanto quanto a nós.
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Há um personagem que, todos os dias, sai à rua com um balão de ar. A diferença entre o ar de dentro e o ar de fora do balão é que o primeiro está envolto por uma cor. A cada novo dia, o personagem veste uma parte do nada de uma cor diferente. No sábado, era azul.
A arbitrariedade da palavra que veste a imagem é a cor azul. O teatro bem pode ser outra cor que veste uma parte do nada. A outra parte anda nua nas nossas cabeças a interpretar, a reagir, a receber o que é dito pelo grupo de atores vestidos impecavelmente num palco também belamente composto. A fragilidade, tema da peça, está na cor. E quando falo em peça, lembro que peça significa parte. O todo do teatro seria, talvez, a união do que acontece em cena com o que acontece em cada uma das pessoas do público. Eu só vejo uma peça. E uma peça que me fala de uma parte de mim.
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Há um personagem que construiu uma ponte. Mas, segundo ele, faltaram dois metros para que o que saiu de um lado chegasse ao outro. Mesmo que, para mim, ponte só é ponte quando une dois lados, o que não é o caso, é assim que ele chama o feito. Se o que escrevo é crítica ou comentário, se o que se vê em cena é mais ou menos teatro, se o que fazemos é melhor ou pior pra nós, isso só quem sabe é quem vive. Não se pára para viver quando se vive em paralelo. Na platéia de Fronchetti, eu olho para o paralelo. Olho e vejo outro personagem.
* Crítica também publicada na Revista Informe C3 #2.
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Há um personagem que carrega terra de um lugar para o outro numa colherinha de chá.
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Ficha técnica:
Roteiro e direção: Marco Fronchetti:
Adaptação livre da obra de Gonçalo M. Tavares
Elenco: Sérgio Lulkin, Valéria Lima, Marco Sório e Andrei Dorneles:
Figurinos: Rô Cortinhas:
Iluminação: Acosta
Apoio: Casa de Cinema de Porto Alegre
2 Comentários:
Rodrigo, parabésn pela crítica.
Sabe, estou repassando teu blog para alguns amigos
do teatro daqui de Guaíba. Bj
Acabei de rever o espetáculo. De fato, é uma das melhores coisas que o ano trouxe para o teatro da capital. De uma sensibilidade tocante, o elenco e a produção estão de parabéns. E quem lhes assiste também.
Obrigado!
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