O mapa_predio 255
Foto: divulgação
A trilha até a montanha e o gesso
O Mapa_prédio 255 lembra, do ponto de vista do seu formato, Love Hurts – todo amor que houver nessa vida, espetáculo dirigido por Zé Adão Barbosa em 1996. Nesse o público caminhava pelo Clube de Cultura sendo acompanhado por um guia que recitava Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes, parando em determinados lugares para assistir a cenas clássicas de amor da história do teatro e da literatura. Na produção de formatura de Francine Kliemann, o público anda pelos dois prédios do Departamento de Arte Dramática da UFRGS e, em cada lugar, há uma cena a mais na contagem de uma história baseada em O céu que nos protege (The sheltering sky), lançado em 1949, o livro de estreia do escritor americano Paul Bowles (1910-1999). Diones Camargo assina a dramaturgia ao lado de Tatiana Vinhais, que também assina sozinha a direção.
Inicialmente, o público, ao obter o ingresso, ganha um passaporte indicando o caminho a seguir. Há dois caminhos possíveis de começo. Na metade da contagem, alguns passaportes permitem que o portador troque de caminho. Outros não. Assim, o resultado é que há quatro contagens previstas para essa história, todas elas determinadas no ingresso ao Prédio número 255 da Rua General Vitorino, Centro de Porto Alegre. Guias auxiliam os grupos que também ganham mapas. Poucos são os ambientes em que é possível sentar. O espetáculo ocupa desde estúdios de ensaio até camarins, corredores, porão, armário, banheiros e área externa. Nisso, nessa concepção da direção, está o maior, mas não o único, valor dessa produção.
Kit e Port Moresby são um casal americano em viagem para a África sem data prevista para o retorno. As dificuldades de relacionamento entre os dois, ao invés de desaparecerem, têm suas cores aumentadas na imensidão das paisagens tropicais. Ao partir, seus interesses são justamente abandonar o mundo moderno e descobrir a simplicidade da vida. A vida, no entanto, se torna bastante complicada a medida que, desprotegidos de si mesmos, têm apenas o céu por eles.
A história começa quando Port conta um sonho que teve. Além de Kit, Turner, um amigo do casal, os acompanha e ouve a imagem que Moresby teve enquanto dormia. Um trem parte em direção a uma montanha. Os dentes de Port, que são de gesso, doem. O trem se choca. A força da imagem dessa máquina partindo em direção ao seu fim acompanhará toda a trajetória do trio e de outros personagens que aparecerão.
No caminho traçado pelo meu passaporte, Kit é protagonista. Somos testemunhas de seu envolvimento furtivo com Turner. Desconfiado da traição da esposa, Port se embrenha cada vez mais nesse mundo novo que todos descobrem ser cada vez mais diferente do seu, os Estados Unidos do pós-guerra. Nós, espectadores, sala após sala, ambiente após ambiente, somos contemplados com imagens, com instalações que se opõem ao corriqueiro: sons amelódicos, esculturas cujas formas não são de fácil identificação, destruição. Port contrai uma doença faltal. Turner desaparece. Uma outra personagem e seu filho também somem. Kit está sozinha nesse mundo completamente diferente do seu. E que se mostra bastante diferente do nosso também.
O espectador desvenda o DAD. E se descobre livre para sentar, para movimentar-se, para olhar o que deseja ou pode, diferente de um espetáculo de assistência tradicional em que se chega, se senta, se assiste e só se levanta na hora de ir embora. Ao mesmo tempo, essa liberdade não é plena. Há paredes nesse prédio público da Universidade. Algumas cenas só acontecem em ambientes em que poucas pessoas têm total acesso, de forma que apenas o som dos diálogos chegam para alguns. Há lugares insalubres, abafados, sujos, enquanto outros são arejados e confortáveis. O espectador, além disso, deve seguir o caminho traçado no seu passaporte. Essa é uma metáfora riquíssima para o universo de Bowles. O deserto é amplo, mas a liberdade dele não é plena afinal. O casal não consegue voltar para casa: documentos somem, transportes são perdidos, o dinheiro acaba, a doença e a morte aparecem. O trem se choca com força e se espedaça nessa montanha como previra o sonho de Port. Sozinha, Kit terá que juntar os cacos de gesso de sua vida.
Não li o livro, nem vi o filme dirigido por Bernardo Bertolucci (1990). Mas sei que o final da história é o encontro de Kit consigo mesma numa sociedade bastante diferente da sua, com outros valores, outros sistemas, outras crenças. Diones Camargo encerra o seu jeito de ver a história antes disso.
Já facilmente de ser identificado nos seus outro trabalhos, o estilo de Diones Camargo é mais uma vez ratificado: amplo uso de imagens, sobreposição delas, referências pop e poucas conexões. O leitor de Camargo precisa se movimentar no texto para conferir-lhe sozinho significado se quiser tê-lo. Sua temática também se repete e me faz lembrar um trecho de A trégua, de Mário Benedetti, que cito a seguir:
“O que está pior, então (hoje em relação ao passado)? Depois de muito espremer meu cérebro, cheguei à convicção de que o que está pior é a resignação. Os rebeldes passaram a ser semi-rebeldes, os semi-rebeldes, a resignados. [...] Mas a resignação não é toda a verdade. No princípio, foi a resignação; depois, o abandono de escrúpulo; mais tarde, a conivência.” (Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 58-59)
Nesse, como também nos outros textos assinados por Camargo, em questão, está o horror diante da conivência, a tentativa fracassada, ou inusitadamente feliz, da resignação. O Mapa_predio 255 é um dos momentos desse dramaturgo em que o final feliz aparece de forma apoteótica e, por isso, estranha a quem lhe está acostumado. A cena final, em que os personagens dançam sob a luz da lua, é um alívio para quem estava preso (e protegido?) sob o sol, ou para quem estava preso (e protegido?) no prédio antigo que tem frente para a Av. Senador Salgado Filho. Um descanso merecido, embora com uma boa dose de alienação e, inevitavelmente, de resignação não bem-vinda. Assim como as cenas sem diálogos e os momentos de caminhadas que entremeiam a história são um momento de pausa para o espectador, a cena final é, quem sabe, uma pausa para Kit que continuará sua trajetória até voltar para casa.
Os personagens não são ricos e há pouco espaço para eles na encenação. Para Kit, que tem privilégios na história que eu vi, sua expressão consiste em brigar com Port, alegrar-se com Turner, chorar no final. A Turner e Port, cabem-lhes menos. Aos demais, menos ainda. Francine Kliemann e Manoela Wunderlich, as duas Kit, estão excelentes em seus papéis, ainda que, como disse, pouco havia para se fazer. O máximo, penso eu, no entanto, foi feito. O mesmo se pode dizer de Fabrizio Gorziza na interpretação de Port. Nessa produção, o destaque está mesmo para a ocupação do espaço cênico. Nesse sentido, a direção de arte (figurinos, maquiagem dos atores e dos ambientes, iluminação) está de parabéns pelos resultados obtidos. A opressão, o sufocamento, as nuances de ritmo que fazem com quem se descanse e se canse, se veja e se reflita, estão todas contempladas nos aspectos visuais: desde os passaportes e os mapas, passando pela postura dos guias, até a forma segura e detalhada com que cada pedaço de lugar fora utilizado.
Sai-se do espetáculo, convivendo um pouco mais consigo mesmo, resignado talvez, mas feliz com a companhia. A metodologia da assistência, a forma de nos fazer trilhar um caminho, mesmo que esse caminho possa terminar contra uma montanha, tem relação direta com a história. Forma e conteúdo aqui se casam perfeitamente e o teatro, excelentemente usado, mostra que ganha não apenas Kliemann, que obtem, nesse verão, seu título de graduação, mas todo um grupo de pessoas que merecem os agradecimentos pela ótima produção que disponibilizaram à cidade nesse momento de finalização do, sem dúvida, mais rico ano das artes cênicas gaúchas.
*
Ficha técnica:
Direção: Tatiana Vinhais
Dramaturgia: Diones Camargo e Tatiana Vinhais
Orientação Acadêmica: Silvia Balestreri Nunes
Elenco:
Alexandre Borin Antunes
Diego Acauan
Fabrizio Gorziza
Francine Kliemann
Frederico Vasques
Keka Bittencourt
Manoela Wunderlich
Pablo Damian
Participação Especial:
Elielto Rocha
Isabel Ramil
Guias: Elielto Rocha, Diones Camargo, Tatiana Vinhais, Isabel Ramil, Vivis Schames e Letícia Pinheiro.
Produção: Francine Kliemann e Pablo Damian
Trilha sonora: O grupo.
Arte gráfica: Isabel Ramil e Juliano Ventura
Cenografia, Ambientação e Iluminação: O grupo
Vídeos: Isabel Ramil
Figurinos: Letícia Pinheiro e Isadora Fantin
Locuções: Alexandre Kumpinski
A trilha até a montanha e o gesso
O Mapa_prédio 255 lembra, do ponto de vista do seu formato, Love Hurts – todo amor que houver nessa vida, espetáculo dirigido por Zé Adão Barbosa em 1996. Nesse o público caminhava pelo Clube de Cultura sendo acompanhado por um guia que recitava Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes, parando em determinados lugares para assistir a cenas clássicas de amor da história do teatro e da literatura. Na produção de formatura de Francine Kliemann, o público anda pelos dois prédios do Departamento de Arte Dramática da UFRGS e, em cada lugar, há uma cena a mais na contagem de uma história baseada em O céu que nos protege (The sheltering sky), lançado em 1949, o livro de estreia do escritor americano Paul Bowles (1910-1999). Diones Camargo assina a dramaturgia ao lado de Tatiana Vinhais, que também assina sozinha a direção.
Inicialmente, o público, ao obter o ingresso, ganha um passaporte indicando o caminho a seguir. Há dois caminhos possíveis de começo. Na metade da contagem, alguns passaportes permitem que o portador troque de caminho. Outros não. Assim, o resultado é que há quatro contagens previstas para essa história, todas elas determinadas no ingresso ao Prédio número 255 da Rua General Vitorino, Centro de Porto Alegre. Guias auxiliam os grupos que também ganham mapas. Poucos são os ambientes em que é possível sentar. O espetáculo ocupa desde estúdios de ensaio até camarins, corredores, porão, armário, banheiros e área externa. Nisso, nessa concepção da direção, está o maior, mas não o único, valor dessa produção.
Kit e Port Moresby são um casal americano em viagem para a África sem data prevista para o retorno. As dificuldades de relacionamento entre os dois, ao invés de desaparecerem, têm suas cores aumentadas na imensidão das paisagens tropicais. Ao partir, seus interesses são justamente abandonar o mundo moderno e descobrir a simplicidade da vida. A vida, no entanto, se torna bastante complicada a medida que, desprotegidos de si mesmos, têm apenas o céu por eles.
A história começa quando Port conta um sonho que teve. Além de Kit, Turner, um amigo do casal, os acompanha e ouve a imagem que Moresby teve enquanto dormia. Um trem parte em direção a uma montanha. Os dentes de Port, que são de gesso, doem. O trem se choca. A força da imagem dessa máquina partindo em direção ao seu fim acompanhará toda a trajetória do trio e de outros personagens que aparecerão.
No caminho traçado pelo meu passaporte, Kit é protagonista. Somos testemunhas de seu envolvimento furtivo com Turner. Desconfiado da traição da esposa, Port se embrenha cada vez mais nesse mundo novo que todos descobrem ser cada vez mais diferente do seu, os Estados Unidos do pós-guerra. Nós, espectadores, sala após sala, ambiente após ambiente, somos contemplados com imagens, com instalações que se opõem ao corriqueiro: sons amelódicos, esculturas cujas formas não são de fácil identificação, destruição. Port contrai uma doença faltal. Turner desaparece. Uma outra personagem e seu filho também somem. Kit está sozinha nesse mundo completamente diferente do seu. E que se mostra bastante diferente do nosso também.
O espectador desvenda o DAD. E se descobre livre para sentar, para movimentar-se, para olhar o que deseja ou pode, diferente de um espetáculo de assistência tradicional em que se chega, se senta, se assiste e só se levanta na hora de ir embora. Ao mesmo tempo, essa liberdade não é plena. Há paredes nesse prédio público da Universidade. Algumas cenas só acontecem em ambientes em que poucas pessoas têm total acesso, de forma que apenas o som dos diálogos chegam para alguns. Há lugares insalubres, abafados, sujos, enquanto outros são arejados e confortáveis. O espectador, além disso, deve seguir o caminho traçado no seu passaporte. Essa é uma metáfora riquíssima para o universo de Bowles. O deserto é amplo, mas a liberdade dele não é plena afinal. O casal não consegue voltar para casa: documentos somem, transportes são perdidos, o dinheiro acaba, a doença e a morte aparecem. O trem se choca com força e se espedaça nessa montanha como previra o sonho de Port. Sozinha, Kit terá que juntar os cacos de gesso de sua vida.
Não li o livro, nem vi o filme dirigido por Bernardo Bertolucci (1990). Mas sei que o final da história é o encontro de Kit consigo mesma numa sociedade bastante diferente da sua, com outros valores, outros sistemas, outras crenças. Diones Camargo encerra o seu jeito de ver a história antes disso.
Já facilmente de ser identificado nos seus outro trabalhos, o estilo de Diones Camargo é mais uma vez ratificado: amplo uso de imagens, sobreposição delas, referências pop e poucas conexões. O leitor de Camargo precisa se movimentar no texto para conferir-lhe sozinho significado se quiser tê-lo. Sua temática também se repete e me faz lembrar um trecho de A trégua, de Mário Benedetti, que cito a seguir:
“O que está pior, então (hoje em relação ao passado)? Depois de muito espremer meu cérebro, cheguei à convicção de que o que está pior é a resignação. Os rebeldes passaram a ser semi-rebeldes, os semi-rebeldes, a resignados. [...] Mas a resignação não é toda a verdade. No princípio, foi a resignação; depois, o abandono de escrúpulo; mais tarde, a conivência.” (Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 58-59)
Nesse, como também nos outros textos assinados por Camargo, em questão, está o horror diante da conivência, a tentativa fracassada, ou inusitadamente feliz, da resignação. O Mapa_predio 255 é um dos momentos desse dramaturgo em que o final feliz aparece de forma apoteótica e, por isso, estranha a quem lhe está acostumado. A cena final, em que os personagens dançam sob a luz da lua, é um alívio para quem estava preso (e protegido?) sob o sol, ou para quem estava preso (e protegido?) no prédio antigo que tem frente para a Av. Senador Salgado Filho. Um descanso merecido, embora com uma boa dose de alienação e, inevitavelmente, de resignação não bem-vinda. Assim como as cenas sem diálogos e os momentos de caminhadas que entremeiam a história são um momento de pausa para o espectador, a cena final é, quem sabe, uma pausa para Kit que continuará sua trajetória até voltar para casa.
Os personagens não são ricos e há pouco espaço para eles na encenação. Para Kit, que tem privilégios na história que eu vi, sua expressão consiste em brigar com Port, alegrar-se com Turner, chorar no final. A Turner e Port, cabem-lhes menos. Aos demais, menos ainda. Francine Kliemann e Manoela Wunderlich, as duas Kit, estão excelentes em seus papéis, ainda que, como disse, pouco havia para se fazer. O máximo, penso eu, no entanto, foi feito. O mesmo se pode dizer de Fabrizio Gorziza na interpretação de Port. Nessa produção, o destaque está mesmo para a ocupação do espaço cênico. Nesse sentido, a direção de arte (figurinos, maquiagem dos atores e dos ambientes, iluminação) está de parabéns pelos resultados obtidos. A opressão, o sufocamento, as nuances de ritmo que fazem com quem se descanse e se canse, se veja e se reflita, estão todas contempladas nos aspectos visuais: desde os passaportes e os mapas, passando pela postura dos guias, até a forma segura e detalhada com que cada pedaço de lugar fora utilizado.
Sai-se do espetáculo, convivendo um pouco mais consigo mesmo, resignado talvez, mas feliz com a companhia. A metodologia da assistência, a forma de nos fazer trilhar um caminho, mesmo que esse caminho possa terminar contra uma montanha, tem relação direta com a história. Forma e conteúdo aqui se casam perfeitamente e o teatro, excelentemente usado, mostra que ganha não apenas Kliemann, que obtem, nesse verão, seu título de graduação, mas todo um grupo de pessoas que merecem os agradecimentos pela ótima produção que disponibilizaram à cidade nesse momento de finalização do, sem dúvida, mais rico ano das artes cênicas gaúchas.
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Ficha técnica:
Direção: Tatiana Vinhais
Dramaturgia: Diones Camargo e Tatiana Vinhais
Orientação Acadêmica: Silvia Balestreri Nunes
Elenco:
Alexandre Borin Antunes
Diego Acauan
Fabrizio Gorziza
Francine Kliemann
Frederico Vasques
Keka Bittencourt
Manoela Wunderlich
Pablo Damian
Participação Especial:
Elielto Rocha
Isabel Ramil
Guias: Elielto Rocha, Diones Camargo, Tatiana Vinhais, Isabel Ramil, Vivis Schames e Letícia Pinheiro.
Produção: Francine Kliemann e Pablo Damian
Trilha sonora: O grupo.
Arte gráfica: Isabel Ramil e Juliano Ventura
Cenografia, Ambientação e Iluminação: O grupo
Vídeos: Isabel Ramil
Figurinos: Letícia Pinheiro e Isadora Fantin
Locuções: Alexandre Kumpinski
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