3 de dez. de 2010

Adoração


Foto: Luciana Mena Barreto

Desafios vencidos! Parabéns!

Há um vício de linguagem entre alguns atores que precisa ser evitado: o de utilizar a expressão textos literários como em oposição a textos dramáticos. Contos, romances, poesias, crônicas e textos dramáticos fazem parte da literatura e são, por isso, literários. Cada um deles tem as suas características, fazendo com que, dentro do seu bojo, se distanciem por esse ou aquele motivo. A boa literatura é dividida depois de lida e nunca antes de ser produzida. Logo, não é possível dizer sem margem de erro que o texto tal é dramático por isso e por aquilo e o outro não é. O mais apropriado é dizer que o texto tal se aproxima de outros textos dramáticos por esse motivo e por aquele. Com isso, abrimos a discussão de gênero textual para os novos textos dramáticos, esses sem rubricas ou com rubricas demais, esses sem nomes de personagens ou com confusão entre os nomes, esses sem diálogos ou os monólogos, esses que são apenas um roteiro de temas ou até mesmo as descrições imagéticas. Todos eles, a princípio, seriam considerados não-dramáticos com a preconceituosa desculpa de não se parecerem com um certo tipo de formatos eleitos (por uma determinada época e por um determinado número de pessoas).

Talvez um dos elementos que, de fato, ajudam na distinção de gênero seja a importância do drama, isto é, da ação, no texto. Aqueles tidos por dramáticos são todos os exemplares literários em que o drama tem uma importância maior do que os outros elementos. Existe drama em todos os gêneros, incluindo os romances e os contos. No entanto, neles, a descrição é auxiliada pelo drama e não o contrário. Assim, olhar um romance ou um conto do ponto de vista do drama significa repeneirá-lo: ficarão todos os signos que apontarem para a ação de forma mais e mais direta. O resto será descartado? Depende do responsável pela peneira.

Caco Coelho, muito sabiamente, não descartou nada de Nelson Rodrigues ao preparar a dramaturgia do espetáculo teatral Adoração. Ou quase nada. O resultado que saiu das suas mãos e foi parar nas mãos do diretor Beto Russo é esplêndido.

Como se deu o encontro entre os signos teatrais e os signos literários nesses textos, a princípio, não-dramáticos de Nelson Rodrigues? Através da voz. E aqui começamos a falar da colaboração entre o teatro e a literatura.

Todos sabemos que não existe jeito certo e jeito errado de produzir uma obra de arte. Mas dizer isso não significa que não possamos admitir que exista uma determinada combinação que traz um certo número de efeitos como conseqüência a guisa de outras combinações. E vai do espectador sentir-se mais confortável com determinados efeitos do que em outros. Eu me sinto confortável quando Nelson Rodrigues é interpretado através da encruzilhada estética personagens melodromáticos em contextos realistas-naturalistas. Para mim, é nesse encontro que os signos dispostos na obra desse importante escritor encontram maior potência, embora nada impeça alguém, um dia, misture Nelson Rodrigues com musical norte-americano, com cinema de suspense, com história em quadrinhos e sei lá eu mais o quê e com quais resultados. Por já ter assistido a algumas falas de Caco Coelho sobre o universo rodrigueano, eu sabia que ele sabia dessa possibilidade mais confortável. Eis que encontro o resultado: Beto Russo tornou a voz de Sandra Alencar nas estruturas firmes e sufocantes que o enredo realista naturalista precisa para ser, deixando o texto e as imagens que ele cria para assumirem sozinhos o que de meledromático falta para o melhor de Nelson Rodrigues se dar. A opção atinge o alvo plenamente e o espetáculo proporciona à assistência momentos de deleite com o texto, com o jeito como ele é dito,com as imagens que são motivadas, com os movimentos e as intenções que a atriz construiu e oferece.

Sandra Alencar está de branco e desenha uma Amarelinha no palco. Faz desenhos na parede, dança, corre, pára. Ela está única, mergulhada, imersa nas palavras, essas rainhas da literatura, mas que, no teatro, são meras subalternas. No teatro, o corpo, a presença física do ator é quem reina. E Sandra está plena. Cada novo tom oferece aos ouvintes assistentes novas carnes, novas cores, novas estruturas.

É certo que o ritmo cai em alguns momentos. Sendo teatro feito de ação, sustentá-la toda em mudanças de voz não é tarefa fácil de ser vencida sem dificuldades. Contudo, o resultado final é satisfatório, uma vez que os desafios vencidos eram altíssimos, o que garbosamente confere aos vencedores mais louvores por seus méritos.

Adoração, que une dois textos de Nelson Rodrigues, Uma menina foi para o céu, 1935; e A paixão religiosa de Maria Amélia (1930) é uma produção do Grupo dos Cinco que deve fazer Porto Alegre se orgulhar.


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Ficha Técnica:

Autor: Nelson Rodrigues
Textos recolhidos por Caco Coelho no projeto de pesquisa 'O Baú de Nelson Rodrigues'.
Dramaturgista: Caco Coelho
Concepção e Direção: Beto Russo
Atuação: Sandra Alencar
Preparação vocal: Ligia Motta
Preparação corporal: Heloisa Bertoli
Figurino: Margarida Rache
Cabelos e maquiagem: Elison Couto
Iluminação: Fabricio Simões
Gravação da trilha: Leandro Nunes e Lucio Alves
Consultoria em Psicologia: Luciane Engel
Desing gráfico: Luiz Cagol
Fotografia: Luciana Mena Barreto e Claudio Etges
Assessoria de imprensa: Sandra Alencar
Assistência de palco e recepção: Cristiane Freitas e Patricia Soso
Produção: Beto Russo e Sandra Alencar
Realização: Grupo dos Cinco

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