2 de dez. de 2010

Hybris


Foto: Fernando Pires


Desmaterialização versus Supramaterialização


É fato que a sociedade em que vivemos é híbrida. Se, na antiguidade, as grandes guerras unificaram a Europa e a Ásia no Império Romano, as navegações da Renascença uniram a América e a África e, no início do século XX, todos choraram a morte da Rainha Vitória da Inglaterra, nada disso pode ser comparado à quase eliminação das distâncias promovida pela internet. Não houve, ao contrário do que se pode pensar, a perda da identidade, mas percebeu-se a própria identidade como uma construção não-subjetiva e bastante social. O que faz com que identifiquemos algo em alguém (ou em outro algo) nada mais é que o nosso repertório, esse adquirido através de outros algos e de outros alguéns no passado social de que fizemos parte. Hybris, novo espetáculo do Grupo Falos & Stercus, opera, enquanto objeto artístico, em vários campos ao mesmo tempo: é expressionista com seus painéis móveis, figurinos, figuras embassadas e alargadas que aparecem, principalmente no início. É surrealista quando mistura idiomas, subverte a horizontalidade e a verticalidade, promovendo formas diagonais e também circulares, num todo que desperta no público diversas possibilidades de sensações. É extremamente tradicional quando constrói personagens bastante rígidos: a filha, a mãe, o pai, o namorado. É inovador quando utiliza ferramentas advindas do circo: o risco físico do rapel, a bicicleta de uma roda só. É mofado quando coloca pessoas nuas a abraçar o público. É novo quando apresenta para muitas pessoas o quase abandonado Pavilhão Popular do Hipódromo do Cristal, um mundialmente conhecido projeto do arquiteto uruguaio Román Fresnedo Siri, em Porto Alegre.

Nesse universo de quebra de paradigmas, a negação das estruturas e a utilização de todas elas dá ao espetáculo uma base justamente híbrida e, por isso, bastante contemporânea. O grande valor da proposta é que o emprego dessa opção estética se dá pelo tema em questão: as relações do ponto de vista de suas origens e formas também híbridas. O desvalor, infelizmente constante tanto quanto o valor, está no fato da metáfora, que une a base ao tema, acabar, por fim, obtendo pouco espaço. O que, afinal, toma o lugar nobre do sentido nesse espetáculo, impedindo o espectador de realmente se sentir tomado pelo objeto?

As estruturas de comunicação aparecem demais, mais que o que é comunicado. Hybris é como uma frase em que, após cada parte, há um parêntese explicativo, dizendo “sujeito”, “predicado”, “adjunto adverbial”, etc. O leitor se perde no que a frase quer dizer tamanha é a quantidade de formas diferentes de dizer o dito de que ela se utiliza. E as formas, que já são um modo de dizer, apesar de concordar com o dito, sendo também híbrida, acaba por se perder. Se as linguagens têm uso misto nesse espetáculo, talvez o seja porque, por primeiro, assim é o ponto de vista dele sobre as relações: qual é o realmente o sentimento que temos uns pelos outros? O amor filial não se mistura com o sexual? Um homem pode deixar de ser homem ao ser pai? O amor materno até que ponto faz bem e até que ponto faz mal? O amor pode levar à morte? Essa fusão de conceitos e transformação deles em proposta de reflexão, em tudo, concorda e ganha cores fortes no grande universo comunicativo que Hybris recupera. Nisso, o grupo está de parabéns.

No entanto, nem todos os aspectos produzem relações tão coesas entre a base e o tema. Apresentarei alguns, sem espaço, nem pretensão para todos:

1) O texto é dito de forma dura pelo grupo de atores. De todos do elenco, o único que consegue um efeito de verdade no dizer as falas é Frederico Restori, que interpreta o personagem da criança. Essa opção estética, ao se diferenciar do contexto e ser, também ela, um elemento dessa hibridização, prejudica, atrapalhando a fruição do espectador;

2) O cenário com linhas amarradas, instalado no andar superior do espaço cênico, tem uma plasticidade que não é explorada pela cena que, nesse local, acontece.

3) É nítida a ideia de utilização de todo o ambiente do Pavilhão. Como conseqüência, o espectador é nutrido por uma vontade de ver onde será a próxima cena mais do que pelo interesse do que acontece nela. Em se tratando de uma história que se revela, aos poucos, em sentido crescente (A filha (Bia Noy) é estuprada pelo pai (Fábio Cunha), tendo uma relação problemática também com a mãe (Carla Cassapo) e outra com mais dois homens (Fábio Rangel e Jeremias Lopes). O conflito evolui na aproximação que a filha almeja com o pai, culminando na decepção dela diante do que conhece pela própria boca do seu algoz.), essa dispersão é prejudicial.

Dessa forma, o rico projeto de desmaterialização formal resultou, antes, numa supramaterialização. Felizmente, motivado a ir conhecer o trabalho desse grupo tão importante para o teatro gaúcho, o público encontra um espetáculo rico em possibilidades, esse resultado de uma pesquisa bastante séria, além de essencial as nossas artes, recebendo os merecidos aplausos por quem reconhece que só quem tem a coragem, a experiência e o poder de muito investir pode se dar ao luxo de também consideravelmente perder. E quem ganha, no fim das contas, são todos nós.


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Ficha Técnica:

Direção e dramaturgia: Marcelo Restori
Elenco: Carla Cassapo, Fábio Cunha, Luciana Paz, Fábio Rangel, Alexandre Vargas e Jeremias Lopes, Bia Noy (atriz recém chegada de Paris, onde atuou por 5 anos), Fredericco Restori (ator mirim)
Bailarinas: Aline Karpinski (também coreógrafa), Iandra Cattani, Ju Rutkowski, Carol Dias e Fabi Martins
Coreografia: Aline Karpinski
Cenários e ambientações: Luiz Marasca.
Trilha especialmente composta: 4 Nazzo e Cláudio Bonder
Desenho de luz: Veridiana Matias
Elaboração de projeto: Alexandre Vargas
Ass. de produção; Elenice Zaltron
Preparação vocal: Marlene Goidanich
Maquiagem: Juliane Senna
Resp. pela prep. de rappel: Fábio Cunha
Videos: Coletivo Incosciente (Frederico Ruas.e Zeca Brito)
Fotos e arte: Fernando Pires
Figurinos: Daniel Lion
Produção, divulgação e realização: Falos & Stercus

1 Comentário:

Anônimo disse...

eu queria saber de quem é o texto (não só de quem é a tradução para o latim) TOindagando

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