Dar carne à memória
Foto: Mariano Czarnobai / PMPA
Orgulho
No show Surdomundo, apresentado no 17º Porto Alegre em Cena, o saxofonista Maurício Pereira perguntou às pessoas presentes, incluindo Marcos Chaves, que me narrou essa história: “Quando a gente canta, alguém presta a atenção na letra?” E, agora, fiquei com vontade de perguntar: quando a gente dança, alguém presta a atenção na dança? Eu, quando não é ballet e quando não é CTG, não presto.
Tanto o ballet clássico quanto as danças folclóricas (gaúchas, alemãs, polacas,...) têm seus códigos pré-definidos, suas cores, suas histórias. As letras das músicas ou as próprias músicas andam juntas com os passos e o espectador assiste à elas como quem assiste a um casamento, para ver se está tudo direitinho: uns pra esquerda, outros pra direita, a noiva de branco, o bouquet,... Quando vou assistir a um espetáculo de dança contemporânea, a dança dos bailarinos ganha a minha atenção pelo microssegundo da potência significativa e nada mais. Depois desse mini espaço de tempo, meus olhos vêem, mas minha mente voa... E, se não voa, tudo fica muito chato e eu durmo. Fica a pergunta: por que estou assistindo a isso? Questão essa que embala os famosos dez minutos de filme do Syd Field, as dez páginas do roteiro, o primeiro capítulo do romance... Estou vendo porque, de uma forma muito interessante, isso está me fazendo pensar naquilo e naquele outro.
Quando comecei a fazer crítica de teatro, eu simplesmente não conseguia falar de um espetáculo de dança sem falar nas memórias que eu tive durante a assistência. Hoje, já entendi que o mais importante para o leitor é saber que, sim, eu tive várias impressões e que valorizo muito as lembranças que ele teve, todas elas, certamente diferentes das minhas. Os movimentos que acontecem sob a luz não tem um alvo certeiro, mas as flechas são enviadas e isso é que importa. Para mim, aqui, importa ainda que sejam enviadas dignamente, considerando a proposta do espetáculo como um todo.
Dar carne à memória tem como proposta celebrar a carreira artística da coreógrafa Eva Schul. Todos os seus quadros são remontagens de coreografias já vistas em espetáculos montados dos anos setenta aos dois mil. A própria Eva assina a direção geral do espetáculo, dividindo o posto com Mônica Dantas, também coreógrafa e professora. O trabalho de Eva é a linha que une todos as cenas e, em cada uma delas, percebemos uma jeito diferente de olhar o tempo, o movimento, o espaço. Comum a todos é, com certeza, a excelência de um trabalho bem cuidado: figurinos e trilha sonora frutos de pesquisa, iluminação à serviço do bailarino e da coreografia. Absolutamente tudo é mostrado dignamente com vistas à engrandecer o tema. A presença de Eva Schul, no nosso Estado, é motivo de orgulho!
O espetáculo pode ser divido em duas partes: na primeira, temos três cenas de três coreografias de décadas diferentes. Na segunda, temos quatro solos e um duo.
Um berro gaúcho (1977), Hall of mirrors (1986) e Catch ou como agarrar um instante (2002) são as três cenas. É interessante olhar para elas como um movimento de interiorização da dança. Na primeira, vemos Eva olhar para as danças e a cultura tradicionalista, o folclore gaucho e trabalhar com o cerne disso tudo. Quais são os gestos fundantes, o comportamento codificado que pode ser utilizado do ponto de vista cênico? Esses são os materiais dessa coreografia que enche o palco, cobre a música e dá ao espectador a visão de um grupo grande de pessoas sem estarem articuladas na superfície, mas na base. Na segunda cena, o interesse cai na relação entre a cultura e o homem, o reflexo, a extinção foucaultiana do sujeito, o modelo social. Movimentos duros, coreografia bem marcada, gestos precisos e calculados. A frieza da dança que representa uma sociedade fria e sectária. A terceira cena traz a dança do homem na sua relação consigo mesmo. O homem e a humanidade que há nos seres, por isso, também homens. É a cena mais longa de todo o espetáculo e a mais substancial. As relações internas são o tema de Eva nessa coreografia que se baseia na exposição do equilíbrio: um aspecto que consiste em algo apoiar outro algo equivalente.
Os solos e o duo acontecem nos intervalos das cenas descritas no parágrafo anterior. Talvez porque neles o olhar do espectador ganhe um foco, são, nesses momentos, que os bailarinos adquiram maior destaque. Com um nível de excelência mais facilmente reconhecido, o trabalho de cada bailarino destaca a obra como um todo como um dos melhores espetáculos de dança do Estado. Luciana Paludo, Cibele Sastre e Mônica Dantas, em seus solos, fazem com que o espectador se sinta orgulhoso de dividir com elas as ruas da cidade. Eduardo Severino, no seu, é não menos honroso. O que foi dito se aplica à dupla Viviane Lencina e Luciano Tavares. Gestos expoentes, movimentos potentes que fazem quem assiste se inspirar e ganhar sua noite.
Sem que importe conferir se tudo está como deveria ser, a dança contemporânea gaúcha faz pensar, refletir, purgar, distanciar-se, aproximar-se. No caso desse espetáculo, também faz aplaudir. Muito.
*
Direção e Concepção: Eva Schul e Mônica Dantas / Assistente de direção: Sofia Schul, Viviane Lencina e Suzi Weber / Coreografia: Eva Schul / Bailarinos: Mônica Dantas, Cibele Sastre, Luciana Paludo, Tatiana Rosa, Eduardo Severino, Luciano Tavares, Viviane Lencina, Maira Meimes, Fernanda Santos, Gabriela Santos, Luiza Moraes, Júlia Ludke, Bibiana Altenbernd, Juliana Rutkowski, Everton Nunez, Juninho Grandi, Alessandro Rivelino, Luciana Hoppe, João Lima, Fernanda Boff, Claudia Dutra, Licia Arosteguy, Paola Vasconcelos / Figurino: Luciane Soares e Eva Schul / Cenografia: Bruno Polidoro / Iluminação: Carmem Salazar / Trilha sonora: Alex Barbosa / Trilha sonora original: Toneco, Carlinhos Hartlieb, Celau Moreira, Antônio Villeroy, Ricardo Severo, Guenter Andréas / Produção: Jerri Dias / Duração: 2h (10min de intervalo) / Classificação: 12 anos
No show Surdomundo, apresentado no 17º Porto Alegre em Cena, o saxofonista Maurício Pereira perguntou às pessoas presentes, incluindo Marcos Chaves, que me narrou essa história: “Quando a gente canta, alguém presta a atenção na letra?” E, agora, fiquei com vontade de perguntar: quando a gente dança, alguém presta a atenção na dança? Eu, quando não é ballet e quando não é CTG, não presto.
Tanto o ballet clássico quanto as danças folclóricas (gaúchas, alemãs, polacas,...) têm seus códigos pré-definidos, suas cores, suas histórias. As letras das músicas ou as próprias músicas andam juntas com os passos e o espectador assiste à elas como quem assiste a um casamento, para ver se está tudo direitinho: uns pra esquerda, outros pra direita, a noiva de branco, o bouquet,... Quando vou assistir a um espetáculo de dança contemporânea, a dança dos bailarinos ganha a minha atenção pelo microssegundo da potência significativa e nada mais. Depois desse mini espaço de tempo, meus olhos vêem, mas minha mente voa... E, se não voa, tudo fica muito chato e eu durmo. Fica a pergunta: por que estou assistindo a isso? Questão essa que embala os famosos dez minutos de filme do Syd Field, as dez páginas do roteiro, o primeiro capítulo do romance... Estou vendo porque, de uma forma muito interessante, isso está me fazendo pensar naquilo e naquele outro.
Quando comecei a fazer crítica de teatro, eu simplesmente não conseguia falar de um espetáculo de dança sem falar nas memórias que eu tive durante a assistência. Hoje, já entendi que o mais importante para o leitor é saber que, sim, eu tive várias impressões e que valorizo muito as lembranças que ele teve, todas elas, certamente diferentes das minhas. Os movimentos que acontecem sob a luz não tem um alvo certeiro, mas as flechas são enviadas e isso é que importa. Para mim, aqui, importa ainda que sejam enviadas dignamente, considerando a proposta do espetáculo como um todo.
Dar carne à memória tem como proposta celebrar a carreira artística da coreógrafa Eva Schul. Todos os seus quadros são remontagens de coreografias já vistas em espetáculos montados dos anos setenta aos dois mil. A própria Eva assina a direção geral do espetáculo, dividindo o posto com Mônica Dantas, também coreógrafa e professora. O trabalho de Eva é a linha que une todos as cenas e, em cada uma delas, percebemos uma jeito diferente de olhar o tempo, o movimento, o espaço. Comum a todos é, com certeza, a excelência de um trabalho bem cuidado: figurinos e trilha sonora frutos de pesquisa, iluminação à serviço do bailarino e da coreografia. Absolutamente tudo é mostrado dignamente com vistas à engrandecer o tema. A presença de Eva Schul, no nosso Estado, é motivo de orgulho!
O espetáculo pode ser divido em duas partes: na primeira, temos três cenas de três coreografias de décadas diferentes. Na segunda, temos quatro solos e um duo.
Um berro gaúcho (1977), Hall of mirrors (1986) e Catch ou como agarrar um instante (2002) são as três cenas. É interessante olhar para elas como um movimento de interiorização da dança. Na primeira, vemos Eva olhar para as danças e a cultura tradicionalista, o folclore gaucho e trabalhar com o cerne disso tudo. Quais são os gestos fundantes, o comportamento codificado que pode ser utilizado do ponto de vista cênico? Esses são os materiais dessa coreografia que enche o palco, cobre a música e dá ao espectador a visão de um grupo grande de pessoas sem estarem articuladas na superfície, mas na base. Na segunda cena, o interesse cai na relação entre a cultura e o homem, o reflexo, a extinção foucaultiana do sujeito, o modelo social. Movimentos duros, coreografia bem marcada, gestos precisos e calculados. A frieza da dança que representa uma sociedade fria e sectária. A terceira cena traz a dança do homem na sua relação consigo mesmo. O homem e a humanidade que há nos seres, por isso, também homens. É a cena mais longa de todo o espetáculo e a mais substancial. As relações internas são o tema de Eva nessa coreografia que se baseia na exposição do equilíbrio: um aspecto que consiste em algo apoiar outro algo equivalente.
Os solos e o duo acontecem nos intervalos das cenas descritas no parágrafo anterior. Talvez porque neles o olhar do espectador ganhe um foco, são, nesses momentos, que os bailarinos adquiram maior destaque. Com um nível de excelência mais facilmente reconhecido, o trabalho de cada bailarino destaca a obra como um todo como um dos melhores espetáculos de dança do Estado. Luciana Paludo, Cibele Sastre e Mônica Dantas, em seus solos, fazem com que o espectador se sinta orgulhoso de dividir com elas as ruas da cidade. Eduardo Severino, no seu, é não menos honroso. O que foi dito se aplica à dupla Viviane Lencina e Luciano Tavares. Gestos expoentes, movimentos potentes que fazem quem assiste se inspirar e ganhar sua noite.
Sem que importe conferir se tudo está como deveria ser, a dança contemporânea gaúcha faz pensar, refletir, purgar, distanciar-se, aproximar-se. No caso desse espetáculo, também faz aplaudir. Muito.
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Direção e Concepção: Eva Schul e Mônica Dantas / Assistente de direção: Sofia Schul, Viviane Lencina e Suzi Weber / Coreografia: Eva Schul / Bailarinos: Mônica Dantas, Cibele Sastre, Luciana Paludo, Tatiana Rosa, Eduardo Severino, Luciano Tavares, Viviane Lencina, Maira Meimes, Fernanda Santos, Gabriela Santos, Luiza Moraes, Júlia Ludke, Bibiana Altenbernd, Juliana Rutkowski, Everton Nunez, Juninho Grandi, Alessandro Rivelino, Luciana Hoppe, João Lima, Fernanda Boff, Claudia Dutra, Licia Arosteguy, Paola Vasconcelos / Figurino: Luciane Soares e Eva Schul / Cenografia: Bruno Polidoro / Iluminação: Carmem Salazar / Trilha sonora: Alex Barbosa / Trilha sonora original: Toneco, Carlinhos Hartlieb, Celau Moreira, Antônio Villeroy, Ricardo Severo, Guenter Andréas / Produção: Jerri Dias / Duração: 2h (10min de intervalo) / Classificação: 12 anos
1 Comentário:
Oi Rodrigo
Gostei muito de encontrar, por 'acaso', tua crítica sobre o 'Dar Carne...'. Também do comentário sobre a luz que, neste caso, deve estar a serviço da obra como bem dissestes.
um abraço!
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