2 de out. de 2008

O Balcão



O nascer de chifres e rabos


Contam as más línguas da minha família que, quando eu era pequeno, eu subia ao terraço munido de um copo de Sunday que eu comprava no MacDonalds que ficava ao lado do meu prédio. Eu tinha uns cinco anos e olhava com curiosidade lá pra baixo: a Avenida Paulista, aquele movimento todo, as pessoas passando apressadas, bem vestidas, com seus problemas alheios a mim, criança que assistia à Turma do Balão Mágico diariamente. Eu era pequeno, mas via todo mundo. Todo mundo era grande, mas ninguém me via. Então, o meu copinho de Sunday ficava com uma vontade louca de voar. E eu deixava ele voar. Atirava ele todinho (isto é, a metade não comida) nas pessoas lá de baixo e ria delas como um pequeno demônio sem chifres, nem rabo (ainda...).
Todas as noites um grupo de pessoas sem importância se encontra num bordel famoso e finge ser os cargos mais representantes da sociedade que, lá fora, se destrói em guerra. Sobem ao terraço (Le Balcon – O terraço, em francês), onde podem ver todos os reais importantes se movimentando, sem que por eles sejam vistos. Com isso, os de cima conquistam a liberdade de dizer o que pensam dos de baixo, matar, ter prazer, vencer, torturar, rir e sonhar suas ilusões sem que ninguém os lembre de que, no fundo, não são nada. Música e cortinas de veludo aquecem o dentro, enquanto o fora se decompõe.
Em todas as quartas-feiras de outubro, ao meio-dia e à noite, um grupo de estudantes de teatro da Ufrgs se encontra na Sala Qorpo Santo. Lá, fingem ser atores profissionais. Exigem senha sem que tenhamos pagado por elas, começam o espetáculo na hora, escurecem a platéia e iluminam o palco. Há luz, trilha, figurino e maquiagem. E há composição de personagem e direção. Se movimentando dentro de um texto de Jean Genet, escrito nos anos 50, sobem no seu palco e olham para baixo. Uma platéia considerável (Viva!!) lhes assiste derramar Sunday nos palcos comportados da vizinhança e a rir de nós, que, muitas vezes, pensamos ser cargos representativos na sociedade, autores de blogs e managers de comunidades do Orkut.
A luz é uma sucessão de ausências e pobreza criativa: não fortalece os momentos, não cria clima e não diz nada. O cenário inexistente é melhor que o existente. A trilha se é boa, fica muito ruim com uma execução tão cheia de más entradas e más saídas. A locução é absolutamente imprópria, sem dicção, sem motivo, sem acrescentar nada a não ser pontos de interrogação. Crianças que sobem ao terraço e ficam atirando sorvete nos outros mereceriam uma tunda de laço para aprender a respeitar o que não lhes cabe. Mas, no escurinho da saída de incêndio, merecem um beijo por não andar na linha, até porque quem anda na linha é trem de ferro, já diria minha avó. Então, começamos a ver a montagem, dirigida por Ana Paula Zanandréa, de um modo diferente e muito mais interessante apesar daqui e dali. As boas interpretações, aquelas que têm a sabedoria de esperar o tempo, de entender o ritmo e, principalmente, de que o melhor do teatro é que vemos sempre o todo e nunca as partes, vão chegando aos poucos ao longo da peça. A certeza de que voz e membros, expressão e olhar são coisas diferentes num texto único, num personagem único fazendo ações convergentes e significando o mesmo vôo do sorvete começa a aparecer da metade pro fim. Isso se vê em Soraia Pancadão ou Priscilla Colombi por quem vale a pena ver mais de uma vez essa produção despretenciosa e agradável desde o seu início. Um pouco disso, é possível encontrar em Douglas Carvalho, com movimentos medrosos, mas sorriso corajoso e em Kayane Rodrigues, com voz destemperada, mas olhar certeiro.
Chantal, a Satine-Moulin-Rouge da Casa de Ilusões, abre, uma noite, a porta e desce do Balcão se doando ao Christian-Paris-Revolução in the name of love. Leva, por isso, uma sorvetada na testa de quem ainda está lá em cima olhando, e rindo, para ela e para nós. Elas (ou eles) nos dizem que só há uma única diferença entre os que estão no alto e nós, na platéia. Embora estejamos todos representando alguém, os alunos do DAD assumem (e muito bem assumido!) que são demônios ainda sem chifres nem rabos, enquanto nós ficamos nos mexendo na cadeira e escondendo o nosso garfo a todo custo.

5 Comentários:

MIGRACIELO disse...

Muito legal isso que vc escreveu sobre a peça, Rodrigo. Consegui entender perfeitamente uma coisa que senti quando vi e que ainda nao tinha entendido. Eu fico atirando sorvete nas pessoas e acontece isso...

Anônimo disse...

Legal, Rodrigo, conseguiste pegar o espírito principal da peça e transpor pro texto. Na minha opinião, como ator da peça, poderia ter falado mais sobre as atuações individualmente... Mas vou considerar tua dica de saber esperar o tempo, o famoso "timing" da comédia, será muito valiosa nas nossas apresentações.
Parabéns pela iniciativa desse blog, nós, artistas, precisamos de feed-back sempre pra cada vez mais melhorarmos o nosso trabalho e dar o nosso recado!!!!
Valeu!!!!!!

Ana Paula Zanandréa disse...

Rodrigo!
Toda a equipe do Balcão agradece a sua crítica e a dica dada atraves no post do nosso blog! Cada vez mais noto que o teatro gaucho precisa de criticos, de pessoas que exponham suas impressoes e deem credibilidade (ou não) aos trabalhos lançados.
Ana Paula

Helena Mello disse...

Teus textos mexem comigo de um jeito engraçado. Quando termino, penso: tenho que reler! Existe um certo caos associado com idéias precisas e muito conteúdo. Queria ter estado na platéia contigo. Tenho evitado apresentações do DAD porque acho os trabalhos pretensiosos para quem está começando. Mas, já me puxaram as orelhas dizendo que se eles não ousarem agora quando não envolvem altos custos nem altos ingressos quando vai ser? Planejei ir na próxima quarta.

Super Sil/ Silvana Rodrigues disse...

Sabes que quando me perguntaram sobre a peça, eu Silvana, reles vestibulanda de teatro (e a anos na luta)fiquei pensando acerca da trilha que de algum modo tinha me incomodado. Soubesse traduzir exatamente o sentimento que tive. Parabens, agora teu blog será mais uma opção para essa pessoa viciada.

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