Copelia.ponto.com
Virtual
O significado está na coisa e na forma como a coisa faz relações internas e externas a ela mesma. Assim, 1) tudo tem significado; 2) esse tudo estabelece (porque é passível de) relações. A arte abstrata abdica de contextos significativos estabelecidos culturalmente (funções primeiras) e se organiza a partir de contextos significativos propostos (funções segundas), deixando os outros sentidos imanentes para o terceiro plano.
Uma maleta de trabalho significa trabalho. O personagem que a manipula é, assim, um executivo ou um aluno superior. (função 1). Mas também a maleta de trabalho constrói o sentido de stress, de burocracia, de papéis, de leis, de seriedade, de responsabilidade, de sobriedade, etc (função 2).
Aí vem a arte abstrata. Um ator manipula uma maletinha pelo palco, como se ela não fosse uma maletinha, mas outra coisa não facilmente identificável. Dezenas de muitas possibilidades significativas surgem a partir disso. O expectador sai à caça de relações. Relaciona a mala com o movimento. A mala com o ator. A mala com a luz. A mala com a pessoa que caminha ao fundo. A mala com a música. A mala com o que foi dito antes. A mala com dezenas de coisas que ainda podem acontecer considerando tudo o que foi feito e faz relações (função 1). Ao mesmo tempo, o expectador sabe que todas as relações que ele fizer são de responsabilidade dele e que o expectador ao lado, provavelmente, também fez outras relações (função 2).
Copelia.ponto.com nasce diante do público como um lugar caudaloso onde várias coisas podem acontecer. Como os campos de terra firme, há pântanos bons e pântanos ruins, mal representados esteticamente e bastante verossímeis. Miguel Sisto Jr. constrói um terreno cheio de valores. O ator (Pascal Berten) veste uma calça preta e uma camisa branca. Está descalço e o cabelo está raspado. O cenário é limpo, havendo uma cadeira com luzes, um carrinho com doces, uma conversa introdutório sobre o que fazer quando não há nada para ser feito e sobre música. Ao fundo, há um painel branco composto por tiras finas.
Dificilmente o expectador, diante desse quadro, encontrará obviedade nas relações possíveis. Não é como quando encontramos uma poltrona e um telefone. Ou uma árvore e frutas. Ou os Arcos da Lapa e uma mulata. Um carrinho de doce e uma maleta? Uma música que tende ao erudito seguida de uma que tende a uma música popular? Roupa que tende ao social e pés descalços? Luzes numa cadeira giratória? Quantas coisas a se fazer, heim?
O programa informa, mas a encenação já deixa claro através das projeções: o protagonista (Berten) constrói uma mulher cibernética, tal como Gepetto construiu seu Pinóquio, Victor construiu o seu Frankenstein e Coppelius a sua Coppélia. O mundo virtual como espaço onde eu interajo com minhas idealizações, com minhas projeções, com a construção do outro mediada por mim e pela cultura. Quem está na platéia do teatro divide o espaço com pessoas que estão vendo a peça pela webcam do diretor que envia online a imagem pelo ciberespaço. Será que ele, esse expectador imaginário, está mesmo lá acompanhando os movimentos através de uma câmera parada ou será que ele está no MSN, no Facebook, enviando emails ou falando ao telefone? No palco, uma atriz (Lara Sosa) interpreta uma personagem (Coppélia) que finge ser virtual. (No ballet de Sain-León, Swanhilde, a noiva do jovem Frantz, finge ser a boneca Coppélia, vestindo suas roupas e dançando em frente ao seu criador.) Do outro lado da webcam, expectadores virtuais fingem ser presentes. O espetáculo de dança finge ser cinema. De vitualidade, o tema de Copelia.ponto.com passa a ser identidade.
É difícil captar um todo que foge de convenções para poder avaliar se atingiu os objetivos a que se propôs. Mas se percebe que é uma produção sem grandes pretensões e que, distribuindo o necessário, constrói um universo bastante interessante a quem lhe valoriza, saindo de casa num inverno duro como o nosso. O figurino e a maquiagem da personagem merecem destaque, bem como a bela edição de vídeos e som. A movimentação é limpa e o tempo é preenchido de forma equilibrada. Fica ao expectador a agradável sensação de ter criado algo em termos de sentido que ele mesmo leva para sua casa e, talvez, vai dividir com alguém virtual ou não.
*
Ficha Técnica:
Direção: Miguel Sisto Jr.
Atuação: Lara Sosa e Pascal Berten
Trilha: Alexandre Fritzen da Rocha
Foto e Designer: Ricardo Santanna
Cenografia: Lara Sosa
Figurino Boneca: Gabriela Sosa
O significado está na coisa e na forma como a coisa faz relações internas e externas a ela mesma. Assim, 1) tudo tem significado; 2) esse tudo estabelece (porque é passível de) relações. A arte abstrata abdica de contextos significativos estabelecidos culturalmente (funções primeiras) e se organiza a partir de contextos significativos propostos (funções segundas), deixando os outros sentidos imanentes para o terceiro plano.
Uma maleta de trabalho significa trabalho. O personagem que a manipula é, assim, um executivo ou um aluno superior. (função 1). Mas também a maleta de trabalho constrói o sentido de stress, de burocracia, de papéis, de leis, de seriedade, de responsabilidade, de sobriedade, etc (função 2).
Aí vem a arte abstrata. Um ator manipula uma maletinha pelo palco, como se ela não fosse uma maletinha, mas outra coisa não facilmente identificável. Dezenas de muitas possibilidades significativas surgem a partir disso. O expectador sai à caça de relações. Relaciona a mala com o movimento. A mala com o ator. A mala com a luz. A mala com a pessoa que caminha ao fundo. A mala com a música. A mala com o que foi dito antes. A mala com dezenas de coisas que ainda podem acontecer considerando tudo o que foi feito e faz relações (função 1). Ao mesmo tempo, o expectador sabe que todas as relações que ele fizer são de responsabilidade dele e que o expectador ao lado, provavelmente, também fez outras relações (função 2).
Copelia.ponto.com nasce diante do público como um lugar caudaloso onde várias coisas podem acontecer. Como os campos de terra firme, há pântanos bons e pântanos ruins, mal representados esteticamente e bastante verossímeis. Miguel Sisto Jr. constrói um terreno cheio de valores. O ator (Pascal Berten) veste uma calça preta e uma camisa branca. Está descalço e o cabelo está raspado. O cenário é limpo, havendo uma cadeira com luzes, um carrinho com doces, uma conversa introdutório sobre o que fazer quando não há nada para ser feito e sobre música. Ao fundo, há um painel branco composto por tiras finas.
Dificilmente o expectador, diante desse quadro, encontrará obviedade nas relações possíveis. Não é como quando encontramos uma poltrona e um telefone. Ou uma árvore e frutas. Ou os Arcos da Lapa e uma mulata. Um carrinho de doce e uma maleta? Uma música que tende ao erudito seguida de uma que tende a uma música popular? Roupa que tende ao social e pés descalços? Luzes numa cadeira giratória? Quantas coisas a se fazer, heim?
O programa informa, mas a encenação já deixa claro através das projeções: o protagonista (Berten) constrói uma mulher cibernética, tal como Gepetto construiu seu Pinóquio, Victor construiu o seu Frankenstein e Coppelius a sua Coppélia. O mundo virtual como espaço onde eu interajo com minhas idealizações, com minhas projeções, com a construção do outro mediada por mim e pela cultura. Quem está na platéia do teatro divide o espaço com pessoas que estão vendo a peça pela webcam do diretor que envia online a imagem pelo ciberespaço. Será que ele, esse expectador imaginário, está mesmo lá acompanhando os movimentos através de uma câmera parada ou será que ele está no MSN, no Facebook, enviando emails ou falando ao telefone? No palco, uma atriz (Lara Sosa) interpreta uma personagem (Coppélia) que finge ser virtual. (No ballet de Sain-León, Swanhilde, a noiva do jovem Frantz, finge ser a boneca Coppélia, vestindo suas roupas e dançando em frente ao seu criador.) Do outro lado da webcam, expectadores virtuais fingem ser presentes. O espetáculo de dança finge ser cinema. De vitualidade, o tema de Copelia.ponto.com passa a ser identidade.
É difícil captar um todo que foge de convenções para poder avaliar se atingiu os objetivos a que se propôs. Mas se percebe que é uma produção sem grandes pretensões e que, distribuindo o necessário, constrói um universo bastante interessante a quem lhe valoriza, saindo de casa num inverno duro como o nosso. O figurino e a maquiagem da personagem merecem destaque, bem como a bela edição de vídeos e som. A movimentação é limpa e o tempo é preenchido de forma equilibrada. Fica ao expectador a agradável sensação de ter criado algo em termos de sentido que ele mesmo leva para sua casa e, talvez, vai dividir com alguém virtual ou não.
*
Ficha Técnica:
Direção: Miguel Sisto Jr.
Atuação: Lara Sosa e Pascal Berten
Trilha: Alexandre Fritzen da Rocha
Foto e Designer: Ricardo Santanna
Cenografia: Lara Sosa
Figurino Boneca: Gabriela Sosa
1 Comentário:
Em 2004, participei de uma montagem do "Ballet Coppélia", com direção da Victoria Milanez, no Salão de Atos da PUCRS. A bailarina paulista Priscila Yokoi interpretava Swanilde e eu o Dr. Coppelius. Foi uma experiência única na minha carreira artística, dançar um ballet clássico ao som de uma orquestra ao vivo.
Postar um comentário