25 de set. de 2009

XVI Porto Alegre em Cena

foto: Nadia Mastromauro

Aposto

Há uma classe sintática que explica bastante a importância do teatro para a humanidade. Essa classe é o aposto. Sem me permitir ser gramatiqueiro, explico (ou tento) em rápidas palavras que essa classe corresponde à expressão que acrescenta uma informação ao nome a que se refere. Essa informação individualiza o nome. O teatro individualiza o ser.

Participaram da XVI Edição do Porto Alegre em Cena, um dos mais importantes eventos teatrais da América, cinqüenta e sete espetáculos. “Um dos mais importantes eventos teatrais da América” é o aposto. O Porto Alegre em Cena não é qualquer coisa.

Assisti a dezesseis espetáculos nos quinze dias de programação. Se somarmos os dez espetáculos que fizeram parte da grade a que eu já tinha assistido porque correspondem à mostra gaúcha, posso dizer que vi quarenta e cinco por cento do todo. Rodrigo Monteiro, quem viu quarenta e cinco por cento do disponível no Porto Alegre em Cena 2009, não é qualquer um. “Quem viu quarenta e cinco por cento de disponível no Porto Alegre em Cena 2009” é uma oração subordinada substantiva apositiva. E, como também a expressão “oração subordinada substantiva apositiva”, Rodrigo Monteiro parece muito pedante nessa construção.

Vou reformular então: Tive o privilégio de assistir a vários espetáculos interessantes e aqui quero dizer que gostaria que muito mais gente tivesse tido a mesma oportunidade. Diferente de qualquer outra arte, as que compõem o grupo das cênicas (teatro, dança, performance) não se repetem. São únicos em suas apresentações. Os espetáculos assistidos por mim naqueles dias, não eram os mesmos nos outros dias e não serão os mesmos se voltarem à nossa capital. A assistência de uma peça teatral é um bem irrecuperável.

E, às vezes, indivisível também. Num dos espetáculos, um aquário deslizava no palco tendo ao fundo um filete de tela branca que, contrastando com o peixe, destacava-o lindamente. Eu, no entanto, estava sentado na platéia alta e o filete branco, aos meus olhos, estava muito acima do aquário. Vi o peixe, mas reconheço que o efeito a que teve total acesso só uma pequena parte do público, era muito especial! O teatro enche um nome de apostos. Confere-lhe especificidade. Profundidade. Tato para com o mundo.

Um freqüentador de teatro contempla o mundo como quem contempla o mar e para ele fabrica redes (“A mar aberto”, RN, Brasil) que, acariciando-o, dele tirará o sustento. Não há, no mundo, motivos para brigar com ele. A fome está em nós. Tudo o que nos desagrada está em nós. E não há como livrar-se dessa e de tudo o que não é bom sem misturar-se, sem travestir-se das roupas (“Mulheres fortes em corpos frágeis”, Porto Alegre, Brasil) que o mundo mesmo nos disponibiliza. Moramos nele. Fazendo parte dele, mas com um olhar atento tanto para sua estrutura como para os seres que, como nós, no mundo vivem, vamos aprendendo sobre nós mesmos (“Caio Fernando Abreu – três monólogos”, PE, Brasil), nossas dores (“La Douleur”, Paris, França), nossa graça (“Rainha [(s)]” – SP, Brasil), e, sobretudo, nossa capacidade de se reinventar (“Kiss Bill” – Montreal, Canadá). Quem vai a teatro e adquire por isso uma especificidade que lhe destaca olha o mundo como se o mundo fosse parte de si e não o contrário. “Há um ser que habita dentro de mim como se eu fosse sua casa” – já dizia Clarice Lispector (“Luisa se estrella contra su casa”, Buenos Aires, Argentina). E resolver esse mundo torna-se parte de nossa responsabilidade (“O dragão”, RJ, Brasil). É daí, sinto dizer, que vem a tal de sensibilidade que toma conta de quem aprecia arte. E disse “sinto” não porque fico triste, mas porque passa-se a sentir tudo aquilo que se diz, que se canta (“Senhora dos afogados”, SP, Brasil), que se dança (“Dúplice”, GO, Brasil) e que se experiencia (“Crépuscule des océans”, Montreal, Canadá). É verdade que as tristezas assumem grandes proporções em pessoas mais sensíveis, mas também é verdade que os prazeres (“Medida por medida”, RJ, Brasil) ficam maiores. Sem falar na possibilidade de redesenhar os desafios e reescrever a própria história (“A mulher que escreveu a bíblia”, RJ, Brasil), o que enche aquele que olha o mar de ânimo e força (“The Voca People”, Jerusalém, Israel) para acordar no dia seguinte mais velho, sim, mas com rugas (“Só os doentes do coração deveriam ser atores”, SP, Brasil) trazidas mais pelas ações do que pelo tempo ("Quartett", Paris, França).

É errado, assim, dizer que teatro não é para qualquer um. Mais adequado é lembrar que o teatro torna qualquer um em um ser especial: um ser que viu essa peça e aquela. Que não gostou disso, mas amou aquilo. Que sentiu a falta de tal pessoa para comentar tal cena, e que encontrou aquela outra na fila do saguão. Que ficou com dor de tanto rir e que não conseguiu aplaudir de tão absorto com a cena final. Que teve que ir embora na metade porque uma atriz passou mal, que não conseguiu um lugar bom de tão cheio que estava a platéia, que não ouviu a fala mais importante da peça porque um bocó começou a tossir muito mais alto do que era necessário. Se o teatro te conta histórias, ir ao teatro é fazer parte de uma.

E esse Porto Alegre em Cena teve várias. Que venha a edição do ano que vem a trazer mais apostos a, desculpem, minha coleção.

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