Mulheres fortes em corpos frágeis [lado b]
Foto: Angela Alegria
Recorte
Você pode até nunca ter ouvido falar da Análise do Discurso e de Michel Pêcheux, mas sabe que veste por dia muitas roupas.
Quando com uma amiga, com a vizinha desconhecida, com o ator canadense, com o mestre em biologia, com a atriz da sua peça, com atriz ganhadora do prêmio no ano passado, com sua mãe, com seu ex-namorado, com seu gato, com sua professora da terceira série, com a coordenadora do seu pós-graduação, com seu chefe, com o estagiário, com a atual namorada do seu ex-marido...
Quando em casa, na sua rua, numa rua desconhecida, num parque à uma da manhã, num bar onde você vai sempre, no MSN, no Orkut, no Twitter, numa mensagem de celular, ao microfone de um videokê, na frente do padre, na casa da talvez futura sogra, no escritório da talvez futura chefe, na frente do talvez futuro orientador, no ouvido de alguém que você ama, às costas de quem você odeia...
Quando ao acordar, ao vestir-se, ao banhar-se, ao comer, ao comer-se, ao fumar, ao sair e esquecer as chaves, ao chegar e esquecer o guarda-chuva em algum momento do passado próximo, ao dormir, ao morrer, ao morrer-se...
“Mulheres fortes em corpos frágeis [lado b]”, produção do Grupo Gaia, me fala de manequins expostos visivelmente às várias roupas da estação. Presos em poses, olham o mundo além do vidro. Então, alguém lhe despe e muda-lhe um braço de posição. A nova tendência chegou, novos gostos a atender.
Três bailarinas expõem suas referências num programa. Tentei esquecer delas. E esqueci. Elas não me importam mesmo porque o bom desse tipo de espetáculo é que o que importa é o que eu leio. E eu leio isso: sou lido. A noção de que até mesmo quando sou sujeito, sou objeto captado pelo outro. O homem só existe como diferente do outro.
Daniela Aquino, Roberta Savian e Joana Amaral são intérpretes dessa interpretação de mundo. Têm movimentos pré-definidos e que se repetem em cada novo ritmo, em cada nova moda da estação. O universo popular, da Rádio Aliança à Rádio Amizade, do jeans à saia balão, da Ciderella ao (Hugo) Chaves: o tema é sempre a passagem, a mudança.
A mim, Diego Mac e Alessandra Chemello, os diretores, quiseram me falar sobre o que fica entre esse e aquele corte de cabelo, esse e aquele cinto ou cadarço de All Star. Quem fica é o olhar do outro. É esse que nos observa, que é nosso inferno. E o céu das temporadas de verão e de inverno.
Um espetáculo baseado em cima da novidade cansa. E “... [lado b]” cansa várias vezes. Em momentos diferentes, o ritmo cai e levanta, cai e levanta reproduzindo, talvez, as liquidações de inverno e verão que antecedem as novas modas. Não tem início, nem fim porque usamos coisas que usávamos há dez anos com uma cor nova e tudo se repete.
O cenário de Élcio Rossini, sem dúvida, nosso melhor cenógrafo, é realmente parte de um conceito muito bem amarrado. A mim, placas brancas pareceram giletes. Há uma gilete na capa do programa e talvez tenha sido por isso que essa imagem me veio à cabeça: recortes. A vitrine, a roupa, a modelo é um recorte do sonho, do ideal, do plano.
Como também somos recortes de nós mesmos quando no churrasco da turma, no fim da festa, na fila dos crachás. Quando acabo de comer e esqueci minha escova de dentes, quando acordo e já não penso em tanta coisa, quando digo não...
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FICHA TÉCNICA
Direção: Alessandra Chemello e Diego Mac
Coreografia: Alessandro Dall’Omo, Diego Mac e Paulo Guimarães
Elenco: Daniela Aquino, Roberta Savian e Joana Amaral
Coordenação técnica: Sandra Santos
Cenário: Élcio Rossini
Figurino: Lourdes Dall’Onder (especialmente convidada)
Iluminação: Liliane Vieira
Trilha sonora: Alessandro Dall’Omo, Diego Mac e Ticiano Paludo
Produção: Grupo Gaia
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