24 de set. de 2009

O amargo santo da purificação

foto: Mariana Viana

O nome Marighella

Reconhecimento é uma etapa superior do processo perceptivo ao conhecimento. Primeiro o mundo se relaciona com os nossos sentidos. Depois, ambos interagem e, quem sabe, modificam-se. “O amargo santo da purificação”, espetáculo da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz pára no fornecimento de sensações. Não chegam a sentimento e, muito pouco, ao conhecimento. A ação passa longe. Em resumo: é muito bonito. E nada além.

Quando pensei que a má experiência (porque teatro se experiencia e não só se vê) era só minha, fui pesquisar na internet. Fotos espalhadas em diversos sites comprovam: o espetáculo é sempre apresentado a pequenas multidões. Não haveria de ser de outro jeito. Dois cortejos dão início à peça, cada um vindo de um lado da cidade. Os atores, vestidos com cores fortes e máscaras que chamam a atenção, se destacam no ambiente não-teatro rua, cantam e executam coreografias. Usam do signo mais básico desse gênero teatral popular: a procissão de entrada. Fica-se maravilhado com os sons, encantado com as danças. Mas muito do que as palavras significam não chega até nós, apesar do som. Além de ver, ouvimos. E tocamos, pois as pessoas se aglomeram tentando de todo o jeito se aproximar, acompanhando o movimento liderado pelo grupo. Feliz de quem fica na primeira fila. Os demais, a óbvia grande maioria, é desconsiderada a não ser pela personagem em perna-de-pau. Vemos, ouvimos, tocamos, mas não nos aproximamos mesmo assim.

Se já não entendemos a música inicial, permanecemos sem entender a primeira parte do espetáculo (e também a segunda) quando finalmente o grupo composto por um número bastante expressivo de atores pára num lugar específico. As primeiras filas sentam-se, as pessoas de trás conseguem enxergar melhor. Umas sobem em bancos e mesas públicas tamanho é o interesse que a Terreira de Tribo consegue despertar. Vemos novas danças, ouvimos novas músicas, novos personagens passam entre nós. Entram bonecos, bicicletas e mais pernas-de-pau. Mas o texto continua sendo bastante inacessível: cheio de rimas e composto por um vocabulário bastante específico. A dramaturgia dessa produção com estética popular é, perdoem-me, elitista. A cada entrada de novo elemento, nova informação histórica é requisitada. Eu, embora acumule dois cursos superiores, fiquei com várias dúvidas. E, também, triste por ouvir as pessoas confundirem Vargas com Sarney, se perguntarem quem afinal de contas foi Marighella, e acharem que tudo era uma nova montagem do televisivo “O Auto da Compadecida.”

É riquíssimo todo o uso de elementos cênicos que disponibiliza o espetáculo ao seu público. Ao olhar, ao ouvido, ao toque. A articulação, que dá sentido e eleva a sensação para o sentimento e a abstração, no entanto, afasta a assistência, indo em direção contrária ao que se propõe. Como uma Esfinge, “O amargo santo da purificação” desafia sem pausa as pessoas a decifrarem o espetáculo que se torna cansativo pela extensa duração (uma hora e meia de pé ou sentado no chão!), pela estrutura biográfica da dramaturgia (já sabemos que a peça só vai terminar quando o protagonista morrer) e pelo texto rimado e cheio de necessidades históricas. Composto de boas interpretações, a direção (coletiva) usa e abusa dos ótimos adereços que tem, embora gaste, em cada um deles, um tempo muito maior do que têm aqueles que foram à praça para curtirem a paisagem natural, ou ir ao banco, ou ao trabalho, ou ao cumprimento enfim de sua agenda e não ao teatro que lhes pegou de surpresa.

Elogiar a entrega do programa no final da peça que contém a descrição das cenas é falar de outra coisa que não teatro. Publicidade, talvez. Muito bem escrito, o material vai ficar armazenado para a segunda vez que eu tiver a oportunidade de ver a peça. Reflito, no entanto, se não teria sido melhor que o interesse me fosse despertado no ato cênico do espetáculo ao invés da posterior leitura do texto informativo.

Requerendo tamanho repertório do público desprevenido, o grupo de teatro de rua mais antigo, conhecido e respeitado da capital gaúcha, apresenta um espetáculo que enche os olhos, mas, em quase nada, atinge os objetivos marcados pela sua própria história. Vemos, ouvimos e estamos. De Marighella, pouco além do nome.

*

Encenação coletiva da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz. Dramaturgia criada coletivamente a partir dos Poemas de Carlos Marighella. Roteiro, sonoplastia, figurinos, máscaras, adereços e elementos cenográficos são de criação coletiva.

Músicas: Johann Alex de Souza

Atuadores: Paulo Flores, Tânia Farias, Pedro Kinast de Camillis, Clélio Cardoso, Luana Fernandes, Marta Haas, Edgar Alves, Roberto Corbo, Sandra Steil, Paula Carvalho, Judit Herrera, Eugênio Barbosa, Roberta Fernandes, Lucio Hallal,Paula Lages, Déia Alencar, Danielle Rosa, Alex Pantera, Karina Sieben, Jorge Gil, Luciana Tondo, Carlo Bregolini, Renan Leandro, Alessandro Müller e Jeferson Cabral.


2 Comentários:

Platero disse...

Oi Rodrigo
Foi tão diferente minha experiência com este trabalho... e te garanto que foi experiência, daquelas que deixam rastros e marcas!
Viva as diferentes experiências, os diferentes repertórios anteriores, as diferentes expectativas!
Abçs e parabéns pelo teu esforço em refletir sobre teatro e compartilhar com os outros tão abertamente.

Jener Gomes disse...

Eu também tive grandes dificuldades em entender o que diziam, e foi apenas na terceira ou quarta vez que assisti a este belo espetáculo que entendi tudo - ou melhor, juntando todas as vezes que assistira até então eu consegui escutar todas as falas. E a minha interpretação sobre as cenas e a história ia mudando conforme eu ia conseguindo os quinhões de informação. Desde a primeira vez eu queria assistir o espetáculo em um ambiente fechado, mantendo ao máximo o seu formato mas de uma forma que pudéssemos apreciar adequadamente tão sensacional obra - e não é apenas bela, o conteúdo e as formas que escolheram para fazer são inteligentes e com muitas referências, resultado de uma grande pesquisa.

Felizmente fui agraciado com um DVD da peça, pela qual, ainda que com as limitações técnicas que jamais reproduzem as vantagens de assistir ao vivo, temos as vantagens técnicas que reproduzem claramente o que não conseguimos pegar assistindo ao vivo.

O teatro de rua tem suas características intrínsecas, uma delas é a dificuldade em escutarmos tudo o que é dito, mas como fã desta excelente peça eu digo para insistirem e assistirem novamente, vale a pena, ela me emociona sempre.
E se algum dia fizerem sessões fechadas para um público especial, ou em um ambiente especial e propício, será o melhor de dois mundos...!

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