Dois perdidos numa noite suja
Foto: Juliana Peres
Dois Perdidos
“Nos damos conta de que a linguagem não pode ser senão compreendida como a de um locutor em contexto. A antiga distinção saussuriana entre língua e fala tende a perder força nas análises que faz, por exemplo, a escola inglesa do funcionamento da enunciação no interior mesmo da língua: a fala (e não somente a língua) está submetida a leis, a regras de jogo, regras que o discurso teatral não somente utiliza (não poderia existir sem elas) mas as exibe [...] desapegadas da sua eficácia na vida, e, por isso, se tornando visíveis.” (UBERSFELD, Anne. El diálogo teatral. Buenos Aires: Garlerna, 2004. Tradução minha.)
Quando falamos, empregamos, ao mesmo tempo, três atos (Austin) em nossa fala: locutório, perlocutório e ilocutório. O primeiro é fazer dar-se conta da informação denotativa, o reconhecimento da palavra. O segundo é fazer dar-se conta da intenção, do motivo. O terceiro é criar uma relação com o interlocutor, fazer fazer, provocar uma reação que pode ser, por exemplo, retornar ao primeiro ato. Nem sempre com a mesma força, os três atos estão presentes na conversação fora do palco e, muitas vezes, de forma inconsciente.
No palco, os atos são visíveis porque sempre são conscientes (ainda que nem sempre controláveis). Quando mostra a linguagem em situação, o discurso teatral enche de purpurina estruturas que passam despercebidas no dia a dia do diálogo “real”. Isto porque o que é dito em cena só tem sentido em cena: Sandra Dani nunca mataria seus filhos, Carlos Alexandre não é irmão gêmeo de Kike Barbosa e Lúcia Bendati não tem 2 ou 3 anos de idade. Saber disso interessa ao diretor de um espetáculo para que ele sinta e faça seus atores e equipe sentir que os contextos estabelecidos no palco são mutáveis em um ritmo bem próprio do texto. Em Becket, há uma tentativa constante de fazer com que o contexto não mude. Numa tragédia grega, os contextos são modificados e os diálogos reagem a essa modificação exterior. O teatro contemporâneo marca a força da relação dialógica enquanto modificadora do contexto cênico. Plínio Marcos se insere nessa última realidade ao escrever, em “Dois Perdidos Numa Noite Suja”, uma relação que é bem pouco horizontal e extremamente vertical: os personagens são conhecidos através da forma como eles convivem consigo mesmos, com o outro, e com os seus interesses individuais e mútuos.
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Leandro Ribeiro, infelizmente, deixou essa marca passar despercebida na sua montagem do texto, um clássico brasileiro. A produção em cartaz na Qorpo Santo é bem pouco horizontal como possibilita o texto. O equívoco (irritante!) está em não fazer aprofundar as relações.
Dois Perdidos
“Nos damos conta de que a linguagem não pode ser senão compreendida como a de um locutor em contexto. A antiga distinção saussuriana entre língua e fala tende a perder força nas análises que faz, por exemplo, a escola inglesa do funcionamento da enunciação no interior mesmo da língua: a fala (e não somente a língua) está submetida a leis, a regras de jogo, regras que o discurso teatral não somente utiliza (não poderia existir sem elas) mas as exibe [...] desapegadas da sua eficácia na vida, e, por isso, se tornando visíveis.” (UBERSFELD, Anne. El diálogo teatral. Buenos Aires: Garlerna, 2004. Tradução minha.)
Quando falamos, empregamos, ao mesmo tempo, três atos (Austin) em nossa fala: locutório, perlocutório e ilocutório. O primeiro é fazer dar-se conta da informação denotativa, o reconhecimento da palavra. O segundo é fazer dar-se conta da intenção, do motivo. O terceiro é criar uma relação com o interlocutor, fazer fazer, provocar uma reação que pode ser, por exemplo, retornar ao primeiro ato. Nem sempre com a mesma força, os três atos estão presentes na conversação fora do palco e, muitas vezes, de forma inconsciente.
No palco, os atos são visíveis porque sempre são conscientes (ainda que nem sempre controláveis). Quando mostra a linguagem em situação, o discurso teatral enche de purpurina estruturas que passam despercebidas no dia a dia do diálogo “real”. Isto porque o que é dito em cena só tem sentido em cena: Sandra Dani nunca mataria seus filhos, Carlos Alexandre não é irmão gêmeo de Kike Barbosa e Lúcia Bendati não tem 2 ou 3 anos de idade. Saber disso interessa ao diretor de um espetáculo para que ele sinta e faça seus atores e equipe sentir que os contextos estabelecidos no palco são mutáveis em um ritmo bem próprio do texto. Em Becket, há uma tentativa constante de fazer com que o contexto não mude. Numa tragédia grega, os contextos são modificados e os diálogos reagem a essa modificação exterior. O teatro contemporâneo marca a força da relação dialógica enquanto modificadora do contexto cênico. Plínio Marcos se insere nessa última realidade ao escrever, em “Dois Perdidos Numa Noite Suja”, uma relação que é bem pouco horizontal e extremamente vertical: os personagens são conhecidos através da forma como eles convivem consigo mesmos, com o outro, e com os seus interesses individuais e mútuos.
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Leandro Ribeiro, infelizmente, deixou essa marca passar despercebida na sua montagem do texto, um clássico brasileiro. A produção em cartaz na Qorpo Santo é bem pouco horizontal como possibilita o texto. O equívoco (irritante!) está em não fazer aprofundar as relações.
O mote é simples: Paco e Tonho são pobres. Tonho precisa de sapatos novos para conseguir um emprego digno do seu estudo. Tonho não tem sapatos novos, mas Paco os tem. Paco não tem estudo, mas tem sapatos novos. Paco não quer emprestar seus sapatos novos para Tonho. Tonho almeja conseguir sapatos novos, sejam os de Paco ou não, a qualquer custo. E os consegue. FIM.
Podemos ir embora?
A resposta de Leandro Ribeiro é sim. E deveria ser Não!!
Há uma relação decrescente na dramaturgia proposta: O personagem Tonho começa invejado por Paco por seu estudo e fineza nos tratos e respeitabilidade. Paco, próximo do fim, é invejado por Tonho por sua força, por sua simplicidade, pelo seu olhar simples de ver a vida. Paco quer ter o estudo e as chances de Tonho. Tonho quer ter a coragem de Paco. Sensibilidade versus força, sonhos versus realidade, compromisso com o futuro versus compromisso com o presente, capital versus interior, conquistar mulheres versus ser conquistado por elas, recuar ou agir, respeitar ou invadir, calar ou falar... E, assim, através unicamente dos diálogos, o texto de Plínio Marcos ganha força, ganha consistência, nos arrebata. O texto, a literatura. Não o teatro de Leandro Ribeiro, em que os dois personagens lutam da primeira fala ao último grito, sempre do mesmo jeito e unicamente pelo mesmo motivo: um querendo o sapato e o outro defendendo ele.
Ribeiro pára no conflito inicial. Nos quarenta minutos de peça, é como se ouvíssemos a mesma fala dos primeiros três minutos sem nenhuma nova informação, sem nenhum outro sentido.
Perdeu-se, nessa montagem, a força reveladora desse grande texto.
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Patrick Peres é o protagonista. Que pena!
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Patrick Peres é o protagonista. Que pena!
Em “Dois Perdidos Numa Noite Suja” não há protagonista. Há uma gangorra. Tonho fala A e Paco fala B. Se Tonho falasse B, Paco falaria A. Em Paco, não há, de princípio, um interesse que não o de negar Tonho. É nesse exercício de negação do exterior que o interior sensível e doce do personagem se estabelece e nos enternece e faz, aos poucos, ver nele também um interesse outro. A finesse de Tonho, por sua vez, nos remete para sua própria frieza demonstrada nas situações finais, para a dureza de seus posicionamentos. É uma gangorra.
Uma gangorra em que, nessa montagem, apenas Patrick Peres está no alto.
Douglas Carvalho, o Paco, é exatamente o mesmo o tempo inteiro. E, tantas vezes repetido, deixa de existir enquanto construção, tamanha a superficialidade de seu trabalho como ator. Uma voz forte, um olhar duro e uma boca presa apresentam um semblante de homem mal: “Paco Maluco”. Mas só. De resto, há um corpo de ator que luta por uma corporalidade que não acontece no palco porque deveria ter acontecido no ensaio. Mãos que se mexem o tempo inteiro numa acrescentar absurdo e terrivelmente contraditório de informações que nem constroem sentido, porque agem contra eles, nem se faz belo.
Sobra para Patrick Peres dialogar sozinho e concentrar sua força interpretativa na relação com o sapato, com a gaita, com os brincos, com a arma. E, se consegue algum resultado positivo como protagonista único, o que não seria se fosse coadjuvante numa dupla que deveria deixar o protagonismo para a relação evidentemente humana do texto?
Perdeu-se, nessa montagem, o contra-ponto que só Paco daria para Tonho.
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Ficha Técnica:
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Ficha Técnica:
Texto: Plínio Marcos
Direção: Leandro Ribeiro
Elenco: Douglas Carvalho e Patrick Peres
Participação Especial: Daiane Oliveira e Gustavo Machado
Sonorização: Leandro Ribeiro
Criação de Luz: Fabiana Santos
Orientação Acadêmica: Moira Stein
Direção: Leandro Ribeiro
Elenco: Douglas Carvalho e Patrick Peres
Participação Especial: Daiane Oliveira e Gustavo Machado
Sonorização: Leandro Ribeiro
Criação de Luz: Fabiana Santos
Orientação Acadêmica: Moira Stein
2 Comentários:
Olá! Faltaram os créditos da fotografia!!! Tudo bem, não colocamos no orkut também, mas são minhas! Abraço! Juliana Peres.
Oi, Juliana!
Créditos nas fotos é uma coisa que falta sim nesse blog.
Mil desculpas, viu!!
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