Roda Gigante
Vale Tudo (?)
“Roda Gigante” tem o mérito de, em primeiro lugar, oferecer a quem tem mais de trinta anos a oportunidade de lembrar a novela “Vale Tudo”, de Gilberto Braga, que foi ao ar em 1988 no horário nobre da TV Globo; e, em segundo lugar, dar aos mais jovens um gostinho do tempo em que não havia outra mídia em que fosse possível ver TV sem que fosse olhando pra própria TV, na sala, com a família. Um tempo em que o Ibope não regulava as narrativas televisivas porque era muito inconsistente e que os grandes autores eram realmente grandes. “Vale Tudo” foi um clássico. Veio depois de Mandala (Dias Gomes) e foi substituída por “O Salvador da Pátria” (Lauro César Muniz). Teve cinco finais gravados e, até hoje, a Leila (Cássia Kiss) é lembrada por ser a assassina de Odete Roitman (Beatriz Segal). Ao construir o texto de “Roda Gigante”, Léo Maciel põe em xeque a novela: quem são seus personagens principais? Qual é a sua trama primeira? E o resultado é consolador: houve um tempo em que poucas linhas poderiam descrever uma história contada em 204 capítulos. A quem assiste a peça, fica o convite para a reflexão: o que aconteceu com as novelas nos últimos vinte anos?
“Roda Gigante”, enquanto teatro, não se sustenta como a novela enquanto televisão. O texto “redondo” de lá não se repete aqui. Lá usa o que o gênero lhe oferece. Aqui está clara a percepção de que a pesquisa ofereceu ao dramaturgo muitas possibilidades, mas lhe faltou firmeza bastante para escolher o que interessaria ao espetáculo. Vamos por partes.
“Roda Gigante” estabelece dois níveis narrativos, distanciando-se desde aí do produto que homenageia. Há a história central e há a história da história. No primeiro nível, Celeste vende a casa que fora do seu avô deixando sua mãe, Rejane, sem ter onde morar. Com o dinheiro da venda, vai para Porto Alegre a fim de tentar a vida. Na capital, rouba de sua amiga (Suzi) o namorado milionário (Rodolfo) com quem se casa protegida pela sogra, a empresária Eugênia Fraga Dantas. A mãe vai para a capital para encontrar a filha e lá conhece um homem (Rui) por quem se apaixona e que, depois, será namorado de Eugênia. Um assassinato acontece e vou parar aqui porque é preciso assistir ao espetáculo e não ficar apenas na leitura da crítica. No segundo nível, há poltronas direcionadas angularmente para a platéia e para o palco. Algumas figuras sentam nesses sofás e, olhando para o que acontece no palco, assistem a sua TV. No intervalo das cenas, utilizam de recursos dramáticos bastante pobres (telefone, leitura de revista,...) para contar o que acontece na história que, nesse momento, não está acontecendo no palco. O tom informativo dos diálogos, e aqui só está se falando da dramaturgia, quebra o ritmo, “mastiga” a narrativa, empobrece o trabalho como um todo. O uso de figuras (a velha, o homossexual, a adolescente,...) nivela por baixo a proposta que tão elogiosamente partiu de uma grande narrativa.
As interpretações sustentadas pelos atores não oferecem nenhuma segurança para o espectador. Em se tratando de um teatro totalmente dramático e nada experimental, quem assiste precisa saber como reagir. Ao contrário do que pode parecer, a indicação de momentos para chorar, para rir, para indignar-se não empobrece a narrativa quando essa se estabelece tão voltada para o melodrama televisivo brasileiro. A concepção da direção, também assinada por Léo Maciel, se mostra bastante confusa. Há atores que construíram seus personagens utilizando máscaras corporais muito fortemente marcadas (os personagens que assistem a TV, o “Homem da casa vendida”, o detetive.). Há outros em que as construções ficam no extremo oposto, bastante realistas (Celeste, Rejane, Suzi, Vitor, Rui). E há ainda aqueles que ficam no meio termo, com posturas notadamente construídas, mas com movimentos discretos (Eugênia e Rodolfo). Nenhum dos três caminhos é ruim. Mas os três caminhos conferem o ar de nucleação, que até pode funcionar numa trama numerosa em termos de personagens, mas que não é o caso de “Roda Gigante”. Outra questão ainda sobre a interpretação, é a forma como foi permitido se relacionar com o externo. A atriz Pitti Sgarbi, em dois personagens diferentes, se relaciona com o além da narrativa, o ato de encenar, criando, com isso, um terceiro nível, o que é bastante prejudicial. De forma geral e, diante das circunstâncias, o trabalho dos atores oferece bons momentos ao público, o que é um valor.
O teatro contribui pouco com “Roda Gigante”. A condição teatral de existência de um único lugar cênico que ganha novos espaços cênicos oferece ao encenador riqueza aqui aproveitada nos parcos momentos em que a dramaturgia permite. Falta agilidade conceitual para que a mesa da cozinha não seja a mesa do bar, por exemplo. Um momento bastante positivo que expressa a contribuição é quando Eugênia e Celeste confabulam com uma luz a pino. A sombra que cresce nos seus rostos deixa ver um ar de monstruosidade que pareceria ridículo na TV Globo, mas que aqui acrescenta valor.
Muito ricos são os usos das projeções e da trilha sonora. Ambas sugerem o melodrama, sem que suas cores sejam carregadas ao nível do deboche. Esse não seria desinteressante, mas a opção feita por quem concebeu o espetáculo, pelo que foi mostrado na noite de estréia, não oferece recursos a uma análise nessa direção.
Duas informações precisam ser dadas ainda nesse texto: “Roda Gigante” é o primeiro trabalho de direção de Léo Maciel, ator bastante representativo no cenário artístico local. E esse espetáculo participa do Projeto Novas Caras, com entrada franca, e que serve como oportunidade para que novos artistas surjam e mostrem suas habilidades. Assim, “Roda Gigante”, embora apresente aspectos importantes aqui considerados negativos, é bem-vindo ao lugar onde está: lugar de se aprender.
Elenco:
Bibi Rosito: Rejane
Gisela Sparremberger: Susy/Menina no sofá
José Henrique Ligabue: Vitor/ Personagem do sofá
Manu Menezes: Selma/Laura/Investigadora
Pitti Sgarbi: Eugênia Fraga Dantas/Velha do sofá
Rafael Regoli: Rui/Modelo/Homem na casa vendida/ Chapado no sofá
Thainá Gallo: Celeste Zilio
Yheuriet Kalil: Rodolfo Fraga Dantas/ Fotógrafo/ Velho no sofá
“Roda Gigante” tem o mérito de, em primeiro lugar, oferecer a quem tem mais de trinta anos a oportunidade de lembrar a novela “Vale Tudo”, de Gilberto Braga, que foi ao ar em 1988 no horário nobre da TV Globo; e, em segundo lugar, dar aos mais jovens um gostinho do tempo em que não havia outra mídia em que fosse possível ver TV sem que fosse olhando pra própria TV, na sala, com a família. Um tempo em que o Ibope não regulava as narrativas televisivas porque era muito inconsistente e que os grandes autores eram realmente grandes. “Vale Tudo” foi um clássico. Veio depois de Mandala (Dias Gomes) e foi substituída por “O Salvador da Pátria” (Lauro César Muniz). Teve cinco finais gravados e, até hoje, a Leila (Cássia Kiss) é lembrada por ser a assassina de Odete Roitman (Beatriz Segal). Ao construir o texto de “Roda Gigante”, Léo Maciel põe em xeque a novela: quem são seus personagens principais? Qual é a sua trama primeira? E o resultado é consolador: houve um tempo em que poucas linhas poderiam descrever uma história contada em 204 capítulos. A quem assiste a peça, fica o convite para a reflexão: o que aconteceu com as novelas nos últimos vinte anos?
“Roda Gigante”, enquanto teatro, não se sustenta como a novela enquanto televisão. O texto “redondo” de lá não se repete aqui. Lá usa o que o gênero lhe oferece. Aqui está clara a percepção de que a pesquisa ofereceu ao dramaturgo muitas possibilidades, mas lhe faltou firmeza bastante para escolher o que interessaria ao espetáculo. Vamos por partes.
“Roda Gigante” estabelece dois níveis narrativos, distanciando-se desde aí do produto que homenageia. Há a história central e há a história da história. No primeiro nível, Celeste vende a casa que fora do seu avô deixando sua mãe, Rejane, sem ter onde morar. Com o dinheiro da venda, vai para Porto Alegre a fim de tentar a vida. Na capital, rouba de sua amiga (Suzi) o namorado milionário (Rodolfo) com quem se casa protegida pela sogra, a empresária Eugênia Fraga Dantas. A mãe vai para a capital para encontrar a filha e lá conhece um homem (Rui) por quem se apaixona e que, depois, será namorado de Eugênia. Um assassinato acontece e vou parar aqui porque é preciso assistir ao espetáculo e não ficar apenas na leitura da crítica. No segundo nível, há poltronas direcionadas angularmente para a platéia e para o palco. Algumas figuras sentam nesses sofás e, olhando para o que acontece no palco, assistem a sua TV. No intervalo das cenas, utilizam de recursos dramáticos bastante pobres (telefone, leitura de revista,...) para contar o que acontece na história que, nesse momento, não está acontecendo no palco. O tom informativo dos diálogos, e aqui só está se falando da dramaturgia, quebra o ritmo, “mastiga” a narrativa, empobrece o trabalho como um todo. O uso de figuras (a velha, o homossexual, a adolescente,...) nivela por baixo a proposta que tão elogiosamente partiu de uma grande narrativa.
As interpretações sustentadas pelos atores não oferecem nenhuma segurança para o espectador. Em se tratando de um teatro totalmente dramático e nada experimental, quem assiste precisa saber como reagir. Ao contrário do que pode parecer, a indicação de momentos para chorar, para rir, para indignar-se não empobrece a narrativa quando essa se estabelece tão voltada para o melodrama televisivo brasileiro. A concepção da direção, também assinada por Léo Maciel, se mostra bastante confusa. Há atores que construíram seus personagens utilizando máscaras corporais muito fortemente marcadas (os personagens que assistem a TV, o “Homem da casa vendida”, o detetive.). Há outros em que as construções ficam no extremo oposto, bastante realistas (Celeste, Rejane, Suzi, Vitor, Rui). E há ainda aqueles que ficam no meio termo, com posturas notadamente construídas, mas com movimentos discretos (Eugênia e Rodolfo). Nenhum dos três caminhos é ruim. Mas os três caminhos conferem o ar de nucleação, que até pode funcionar numa trama numerosa em termos de personagens, mas que não é o caso de “Roda Gigante”. Outra questão ainda sobre a interpretação, é a forma como foi permitido se relacionar com o externo. A atriz Pitti Sgarbi, em dois personagens diferentes, se relaciona com o além da narrativa, o ato de encenar, criando, com isso, um terceiro nível, o que é bastante prejudicial. De forma geral e, diante das circunstâncias, o trabalho dos atores oferece bons momentos ao público, o que é um valor.
O teatro contribui pouco com “Roda Gigante”. A condição teatral de existência de um único lugar cênico que ganha novos espaços cênicos oferece ao encenador riqueza aqui aproveitada nos parcos momentos em que a dramaturgia permite. Falta agilidade conceitual para que a mesa da cozinha não seja a mesa do bar, por exemplo. Um momento bastante positivo que expressa a contribuição é quando Eugênia e Celeste confabulam com uma luz a pino. A sombra que cresce nos seus rostos deixa ver um ar de monstruosidade que pareceria ridículo na TV Globo, mas que aqui acrescenta valor.
Muito ricos são os usos das projeções e da trilha sonora. Ambas sugerem o melodrama, sem que suas cores sejam carregadas ao nível do deboche. Esse não seria desinteressante, mas a opção feita por quem concebeu o espetáculo, pelo que foi mostrado na noite de estréia, não oferece recursos a uma análise nessa direção.
Duas informações precisam ser dadas ainda nesse texto: “Roda Gigante” é o primeiro trabalho de direção de Léo Maciel, ator bastante representativo no cenário artístico local. E esse espetáculo participa do Projeto Novas Caras, com entrada franca, e que serve como oportunidade para que novos artistas surjam e mostrem suas habilidades. Assim, “Roda Gigante”, embora apresente aspectos importantes aqui considerados negativos, é bem-vindo ao lugar onde está: lugar de se aprender.
*
Ficha Técnica:
Texto, Direção e Trilha Sonora: Léo Maciel
Figurinos: Fabrício RodriguezIluminação: Igor Pretto
Elenco:
Bibi Rosito: Rejane
Gisela Sparremberger: Susy/Menina no sofá
José Henrique Ligabue: Vitor/ Personagem do sofá
Manu Menezes: Selma/Laura/Investigadora
Pitti Sgarbi: Eugênia Fraga Dantas/Velha do sofá
Rafael Regoli: Rui/Modelo/Homem na casa vendida/ Chapado no sofá
Thainá Gallo: Celeste Zilio
Yheuriet Kalil: Rodolfo Fraga Dantas/ Fotógrafo/ Velho no sofá
Produção: Yheuriet Kalil e Fernanda Marques
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