23 de dez. de 2010

O mapa_predio 255

Foto: divulgação


A trilha até a montanha e o gesso

O Mapa_prédio 255 lembra, do ponto de vista do seu formato, Love Hurts – todo amor que houver nessa vida, espetáculo dirigido por Zé Adão Barbosa em 1996. Nesse o público caminhava pelo Clube de Cultura sendo acompanhado por um guia que recitava Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes, parando em determinados lugares para assistir a cenas clássicas de amor da história do teatro e da literatura. Na produção de formatura de Francine Kliemann, o público anda pelos dois prédios do Departamento de Arte Dramática da UFRGS e, em cada lugar, há uma cena a mais na contagem de uma história baseada em O céu que nos protege (The sheltering sky), lançado em 1949, o livro de estreia do escritor americano Paul Bowles (1910-1999). Diones Camargo assina a dramaturgia ao lado de Tatiana Vinhais, que também assina sozinha a direção.

Inicialmente, o público, ao obter o ingresso, ganha um passaporte indicando o caminho a seguir. Há dois caminhos possíveis de começo. Na metade da contagem, alguns passaportes permitem que o portador troque de caminho. Outros não. Assim, o resultado é que há quatro contagens previstas para essa história, todas elas determinadas no ingresso ao Prédio número 255 da Rua General Vitorino, Centro de Porto Alegre. Guias auxiliam os grupos que também ganham mapas. Poucos são os ambientes em que é possível sentar. O espetáculo ocupa desde estúdios de ensaio até camarins, corredores, porão, armário, banheiros e área externa. Nisso, nessa concepção da direção, está o maior, mas não o único, valor dessa produção.

Kit e Port Moresby são um casal americano em viagem para a África sem data prevista para o retorno. As dificuldades de relacionamento entre os dois, ao invés de desaparecerem, têm suas cores aumentadas na imensidão das paisagens tropicais. Ao partir, seus interesses são justamente abandonar o mundo moderno e descobrir a simplicidade da vida. A vida, no entanto, se torna bastante complicada a medida que, desprotegidos de si mesmos, têm apenas o céu por eles.

A história começa quando Port conta um sonho que teve. Além de Kit, Turner, um amigo do casal, os acompanha e ouve a imagem que Moresby teve enquanto dormia. Um trem parte em direção a uma montanha. Os dentes de Port, que são de gesso, doem. O trem se choca. A força da imagem dessa máquina partindo em direção ao seu fim acompanhará toda a trajetória do trio e de outros personagens que aparecerão.

No caminho traçado pelo meu passaporte, Kit é protagonista. Somos testemunhas de seu envolvimento furtivo com Turner. Desconfiado da traição da esposa, Port se embrenha cada vez mais nesse mundo novo que todos descobrem ser cada vez mais diferente do seu, os Estados Unidos do pós-guerra. Nós, espectadores, sala após sala, ambiente após ambiente, somos contemplados com imagens, com instalações que se opõem ao corriqueiro: sons amelódicos, esculturas cujas formas não são de fácil identificação, destruição. Port contrai uma doença faltal. Turner desaparece. Uma outra personagem e seu filho também somem. Kit está sozinha nesse mundo completamente diferente do seu. E que se mostra bastante diferente do nosso também.

O espectador desvenda o DAD. E se descobre livre para sentar, para movimentar-se, para olhar o que deseja ou pode, diferente de um espetáculo de assistência tradicional em que se chega, se senta, se assiste e só se levanta na hora de ir embora. Ao mesmo tempo, essa liberdade não é plena. Há paredes nesse prédio público da Universidade. Algumas cenas só acontecem em ambientes em que poucas pessoas têm total acesso, de forma que apenas o som dos diálogos chegam para alguns. Há lugares insalubres, abafados, sujos, enquanto outros são arejados e confortáveis. O espectador, além disso, deve seguir o caminho traçado no seu passaporte. Essa é uma metáfora riquíssima para o universo de Bowles. O deserto é amplo, mas a liberdade dele não é plena afinal. O casal não consegue voltar para casa: documentos somem, transportes são perdidos, o dinheiro acaba, a doença e a morte aparecem. O trem se choca com força e se espedaça nessa montanha como previra o sonho de Port. Sozinha, Kit terá que juntar os cacos de gesso de sua vida.

Não li o livro, nem vi o filme dirigido por Bernardo Bertolucci (1990). Mas sei que o final da história é o encontro de Kit consigo mesma numa sociedade bastante diferente da sua, com outros valores, outros sistemas, outras crenças. Diones Camargo encerra o seu jeito de ver a história antes disso.

Já facilmente de ser identificado nos seus outro trabalhos, o estilo de Diones Camargo é mais uma vez ratificado: amplo uso de imagens, sobreposição delas, referências pop e poucas conexões. O leitor de Camargo precisa se movimentar no texto para conferir-lhe sozinho significado se quiser tê-lo. Sua temática também se repete e me faz lembrar um trecho de A trégua, de Mário Benedetti, que cito a seguir:

“O que está pior, então (hoje em relação ao passado)? Depois de muito espremer meu cérebro, cheguei à convicção de que o que está pior é a resignação. Os rebeldes passaram a ser semi-rebeldes, os semi-rebeldes, a resignados. [...] Mas a resignação não é toda a verdade. No princípio, foi a resignação; depois, o abandono de escrúpulo; mais tarde, a conivência.” (Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 58-59)

Nesse, como também nos outros textos assinados por Camargo, em questão, está o horror diante da conivência, a tentativa fracassada, ou inusitadamente feliz, da resignação. O Mapa_predio 255 é um dos momentos desse dramaturgo em que o final feliz aparece de forma apoteótica e, por isso, estranha a quem lhe está acostumado. A cena final, em que os personagens dançam sob a luz da lua, é um alívio para quem estava preso (e protegido?) sob o sol, ou para quem estava preso (e protegido?)  no prédio antigo que tem frente para a Av. Senador Salgado Filho. Um descanso merecido, embora com uma boa dose de alienação e, inevitavelmente, de resignação não bem-vinda. Assim como as cenas sem diálogos e os momentos de caminhadas que entremeiam a história são um momento de pausa para o espectador, a cena final é, quem sabe, uma pausa para Kit que continuará sua trajetória até voltar para casa.

Os personagens não são ricos e há pouco espaço para eles na encenação. Para Kit, que tem privilégios na história que eu vi, sua expressão consiste em brigar com Port, alegrar-se com Turner, chorar no final. A Turner e Port, cabem-lhes menos. Aos demais, menos ainda. Francine Kliemann e Manoela Wunderlich, as duas Kit, estão excelentes em seus papéis, ainda que, como disse, pouco havia para se fazer. O máximo, penso eu, no entanto, foi feito. O mesmo se pode dizer de Fabrizio Gorziza na interpretação de Port. Nessa produção, o destaque está mesmo para a ocupação do espaço cênico. Nesse sentido, a direção de arte (figurinos, maquiagem dos atores e dos ambientes, iluminação) está de parabéns pelos resultados obtidos. A opressão, o sufocamento, as nuances de ritmo que fazem com quem se descanse e se canse, se veja e se reflita, estão todas contempladas nos aspectos visuais: desde os passaportes e os mapas, passando pela postura dos guias, até a forma segura e detalhada com que cada pedaço de lugar fora utilizado.

Sai-se do espetáculo, convivendo um pouco mais consigo mesmo, resignado talvez, mas feliz com a companhia. A metodologia da assistência, a forma de nos fazer trilhar um caminho, mesmo que esse caminho possa terminar contra uma montanha, tem relação direta com a história. Forma e conteúdo aqui se casam perfeitamente e o teatro, excelentemente usado, mostra que ganha não apenas Kliemann, que obtem, nesse verão, seu título de graduação, mas todo um grupo de pessoas que merecem os agradecimentos pela ótima produção que disponibilizaram à cidade nesse momento de finalização do, sem dúvida, mais rico ano das artes cênicas gaúchas.

*

Ficha técnica:

Direção: Tatiana Vinhais
Dramaturgia: Diones Camargo e Tatiana Vinhais
Orientação Acadêmica: Silvia Balestreri Nunes

Elenco:
Alexandre Borin Antunes
Diego Acauan
Fabrizio Gorziza
Francine Kliemann
Frederico Vasques
Keka Bittencourt
Manoela Wunderlich
Pablo Damian

Participação Especial:
Elielto Rocha
Isabel Ramil

Guias: Elielto Rocha, Diones Camargo, Tatiana Vinhais, Isabel Ramil, Vivis Schames e Letícia Pinheiro.
Produção: Francine Kliemann e Pablo Damian
Trilha sonora: O grupo.
Arte gráfica: Isabel Ramil e Juliano Ventura
Cenografia, Ambientação e Iluminação: O grupo
Vídeos: Isabel Ramil
Figurinos: Letícia Pinheiro e Isadora Fantin
Locuções: Alexandre Kumpinski

19 de dez. de 2010

A roupa nova do Rei

Foto: Jorge Scherer

Simples e ótimo

A montagem de A roupa nova do rei produzida pelo Grupo Farsa é daquelas peças infantis de que a gente vai se lembrar no futuro com saudades. E, talvez, quando lembrarmos dela, pensaremos que consiste na idealização do passado a grande quantidade de bons valores que a essa peça atribuímos. Não é. Os méritos do espetáculo são visíveis e consistem no resultado de uma avaliação criteriosa e concreta.

A excelência dos aspectos visuais não é novidade para quem está acostumado às direções (extremamente comportadas) de Gilberto Fonseca. Não há um só detalhe que esteja fora do lugar, que não esteja bem acabado, que não expresse formalmente o grande valor que o grupo dá ao público que lhe assiste. Cenário, figurino, adereços, maquiagem e trilha sonora estão perfeitamente articulados com a proposta da encenação, trazendo a ela os benefícios que lhes são seus: as cores fortes dos figurinos de uma história para crianças ambientada cenicamente num palácio, a máscara branca que encerra os personagens num campo imaginativo passível de várias contribuições a partir do repertório de cada um, os objetos de cena e o cenário bastante simples e práticos, que não poluem e estimulam o preenchimento da assistência, a trilha sonora que, além de dar o tom, contribui para a criação do ritmo e o fortalecimento das intenções, essas totalmente convergentes e dispostas dramaticamente.

As interpretações, tanto de modo geral como em casos específicos, atingem patamares que elevam o teatro para crianças que é feito na capital gaúcha. Não há destaques, porque todos estão muito bem. As nuances de voz de Marcos Chaves, que interpreta o Rei, se destacam se compararmos não o ator com os seus colegas de cena, mas esse elemento de sua performance com outros, como, por exemplo, a forma como o personagem dá a ver sua movimentação, suas intenções, seu crescimento. No mesmo sentido, poderíamos destacar a força do Ministro (Plínio Marcos) e ardilosidade do Conselheiro (Vinícius Meneguzzi), se compararmos a rápida identificação que esses dois personagens estabelecem com o público. Não se pode esquecer dos dois Artesãos (protagonistas e não coadjuvantes, como equivocadamente os categorizou o júri do Prêmio Tibicuera 2010), a esperteza de um (Lúcia Bendati) e inocência de outro (Ariane Guerra), dois replicantes que, em quase nada se afastam das duplas conhecidas como o João Grilo e o Chicó, o Pink e o Cérebro, o Gordo e o Magro, e tantas outras. É nitido que cada figura foi construída depois de uma intensa investigação sobre a possível riqueza de detalhes que o texto adaptado por Roberto Oliveira, do clássico publicado em 1837 pelo dinamarquês Hans Christian Andersen, oferece enquanto literatura. Incluindo ainda as figuras que aparecem rapidamente como candidatos ao cargo de costureiro real, não há, em nenhuma construção, a expressão de um só elemento cuja forma seja discordante com o todo. A roupa nova do Rei é um espetáculo excelentemente dramático e sua montagem deixa claro que quem é responsável por ela sabe exatamente o que está fazendo.

O resultado é o agradável entretenimento que faz rir crianças e adultos, nossa cidade e, espero, também outras. Faz repensar sobre o valor que damos à nossa própria inteligência e à força que a opinião alheia exerce sobre nós. Com os merecidos parabéns, o Grupo Farsa presenteia nossa cidade com um presente aparentemente simples, mas, em essência, resultado de vários desafios plenamente vencidos. Vale a pena ser visto e aplaudido e, não menos, recomendado.

*

Ficha técnica:

Direção: Gilberto Fonseca e João Pedro Madureira
Texto: Roberto Oliveira (a partir do conto de Hans Christian Andersen)
Elenco: Marcos Chaves, Ariane Guerra, Lúcia Bendati, Plínio Marcos Rodrigues e Vinícius Meneguzzi.
Figurino: Daniel Lion
Trilha sonora: Marcos Chaves
Cenário: Gilberto Fonseca e Grupo Farsa
Iluminação: Gilberto Fonseca
Maquiagem: Elison Couto
Produção: André Oliveira e Grupo Farsa

5 de dez. de 2010

Os melhores do ano 2010

O resultado oficial

Após os votos individuais terem recebido atenção, o grupo de jurados do Troféu Açorianos de Teatro Adulto 2010 assinou em unanimidade a lista dos seguintes indicados aos melhores do ano nas seguintes categorias:


MELHOR ILUMINAÇÃO
Bathista Freire (Sobre saltos de Scarpin)*
Carol Zimmer (Wonderland)
Claudia De Bem e Maurício Moura (Bodas de sangue)
João Carlos Dadico (O dia desmanchado)
Maurício Moura (Milkshakespeare)



MELHOR CENÁRIO
Elcio Rossini (Wonderland)
Luiz Marasca (Hybris)*
Jessé Oliveira e Grupo (O osso de Mor Lam)
Sylvia Moreira (Bodas de sangue)
Zao Figueiredo (Sobre saltos de Scarpin)

MELHOR TRILHA SONORA
4 Nazzo e Claudio Bonder (Hybris)
Arthur de Faria (Solos Trágicos)
Arthur de Faria (Wonderland)
Bebeto Alves (Milkshakespeare)
Jackson Zambelli e Sérgio Olivé (O dia desmanchado)*

MELHOR FIGURINO
Antônio Rabadan (A caravana da ilusão)
Daniel Lion (Sobre saltos de scarpin)
Daniel Lion (Wonderland)*
Juliana Kussler e Renata de Lélis (Milkshakespeare)
Rô Cortinhas (Bodas de sangue)

MELHOR ATRIZ COADJUVANTE
Luísa Herter (A lição)
Patrícia Soso (Parasitas)
Renata de Lélis (Milkshakespeare)*
Sandra Dani (Bodas de sangue)
Vika Schabbach (Bodas de sangue)

MELHOR ATOR COADJUVANTE
Daniel Colin (Wonderland)
Eduardo Mendonça (Milkshakespeare)*
Frederico Restori (Hybris)
Mauro Soares (Bodas de sangue)
William Martins (Sobre saltos de Scarpin)

MELHOR ATRIZ
Aurea Batista (Stand up drama)
Gisela Habeyche (5 tempos para a morte)
Patrícia Soso (Fora do ar)
Sandra Alencar (Adoração)
Vanise Carneiro (Nove mentiras sobre a verdade)*

MELHOR ATOR
Felipe de Paula (Milkshakespeare)
Leo Barisson (Fora do ar)
Luís Paulo Vasconcellos (O animal agonizante)
Marcelo Adams (A lição)
Marcelo Bulgarelli (O dia desmanchado)*

MEHOR DRAMATURGIA
Daniel Colin e Filipe Vieira de Galisteo (Wonderland)
Diones Camargo (Nove mentiras sobre a verdade)
Felipe Mônaco (Fora do ar)
Júlio Zanotta Vieira (Milkshakespeare)
Patrícia Fagundes (Clube do fracasso)*

MELHOR PRODUÇÃO
Fernando Zugno e Miguel Arcanjo Coronel (Bodas de sangue)
Morgana Kretzmann e Patrícia Fagundes (Clube do fracasso)
Rodrigo Marquez (Wonderland)*
Falos & Stercus (Hybris)
Cecília Daudt e Airton de Oliveira (Sobre saltos de Scarpin)

MELHOR DIREÇÃO
Daniel Colin (Wonderland ou o que M. Jackson encontrou lá)*
Camilo de Lélis (Milkshakespeare)
Luciano Alabarse (Bodas de sangue)
Patrícia Fagundes (Clube do fracasso)
Tainah Dadda (Sobre saltos de Scarpin)

MELHOR ESPETÁCULO
Bodas de sangue
Clube do fracasso
Milkshakespeare
O dia desmanchado
Wonderland ou o que M. Jackson encontrou lá*

A partir do momento em que eu assinei ata, a lista acima passou a ser a minha lista.
Envio os meus parabéns a todos os indicados, seus familiares e amigos. Parabéns aos patrocinadores e ao público de teatro de Porto Alegre! Saudações à Coordenação de Artes Cênicas e ao Grupo de Jurados deste ano, cuja árdua tarefa ainda não terminou.

* Vencedor do troféu de Melhor, segundo a opinião dos 10 jurados da comissão 2010. Resultado divulgado em Cerimônia Oficial no dia 17/12/2010. Mais informações aqui.

3 de dez. de 2010

Adoração


Foto: Luciana Mena Barreto

Desafios vencidos! Parabéns!

Há um vício de linguagem entre alguns atores que precisa ser evitado: o de utilizar a expressão textos literários como em oposição a textos dramáticos. Contos, romances, poesias, crônicas e textos dramáticos fazem parte da literatura e são, por isso, literários. Cada um deles tem as suas características, fazendo com que, dentro do seu bojo, se distanciem por esse ou aquele motivo. A boa literatura é dividida depois de lida e nunca antes de ser produzida. Logo, não é possível dizer sem margem de erro que o texto tal é dramático por isso e por aquilo e o outro não é. O mais apropriado é dizer que o texto tal se aproxima de outros textos dramáticos por esse motivo e por aquele. Com isso, abrimos a discussão de gênero textual para os novos textos dramáticos, esses sem rubricas ou com rubricas demais, esses sem nomes de personagens ou com confusão entre os nomes, esses sem diálogos ou os monólogos, esses que são apenas um roteiro de temas ou até mesmo as descrições imagéticas. Todos eles, a princípio, seriam considerados não-dramáticos com a preconceituosa desculpa de não se parecerem com um certo tipo de formatos eleitos (por uma determinada época e por um determinado número de pessoas).

Talvez um dos elementos que, de fato, ajudam na distinção de gênero seja a importância do drama, isto é, da ação, no texto. Aqueles tidos por dramáticos são todos os exemplares literários em que o drama tem uma importância maior do que os outros elementos. Existe drama em todos os gêneros, incluindo os romances e os contos. No entanto, neles, a descrição é auxiliada pelo drama e não o contrário. Assim, olhar um romance ou um conto do ponto de vista do drama significa repeneirá-lo: ficarão todos os signos que apontarem para a ação de forma mais e mais direta. O resto será descartado? Depende do responsável pela peneira.

Caco Coelho, muito sabiamente, não descartou nada de Nelson Rodrigues ao preparar a dramaturgia do espetáculo teatral Adoração. Ou quase nada. O resultado que saiu das suas mãos e foi parar nas mãos do diretor Beto Russo é esplêndido.

Como se deu o encontro entre os signos teatrais e os signos literários nesses textos, a princípio, não-dramáticos de Nelson Rodrigues? Através da voz. E aqui começamos a falar da colaboração entre o teatro e a literatura.

Todos sabemos que não existe jeito certo e jeito errado de produzir uma obra de arte. Mas dizer isso não significa que não possamos admitir que exista uma determinada combinação que traz um certo número de efeitos como conseqüência a guisa de outras combinações. E vai do espectador sentir-se mais confortável com determinados efeitos do que em outros. Eu me sinto confortável quando Nelson Rodrigues é interpretado através da encruzilhada estética personagens melodromáticos em contextos realistas-naturalistas. Para mim, é nesse encontro que os signos dispostos na obra desse importante escritor encontram maior potência, embora nada impeça alguém, um dia, misture Nelson Rodrigues com musical norte-americano, com cinema de suspense, com história em quadrinhos e sei lá eu mais o quê e com quais resultados. Por já ter assistido a algumas falas de Caco Coelho sobre o universo rodrigueano, eu sabia que ele sabia dessa possibilidade mais confortável. Eis que encontro o resultado: Beto Russo tornou a voz de Sandra Alencar nas estruturas firmes e sufocantes que o enredo realista naturalista precisa para ser, deixando o texto e as imagens que ele cria para assumirem sozinhos o que de meledromático falta para o melhor de Nelson Rodrigues se dar. A opção atinge o alvo plenamente e o espetáculo proporciona à assistência momentos de deleite com o texto, com o jeito como ele é dito,com as imagens que são motivadas, com os movimentos e as intenções que a atriz construiu e oferece.

Sandra Alencar está de branco e desenha uma Amarelinha no palco. Faz desenhos na parede, dança, corre, pára. Ela está única, mergulhada, imersa nas palavras, essas rainhas da literatura, mas que, no teatro, são meras subalternas. No teatro, o corpo, a presença física do ator é quem reina. E Sandra está plena. Cada novo tom oferece aos ouvintes assistentes novas carnes, novas cores, novas estruturas.

É certo que o ritmo cai em alguns momentos. Sendo teatro feito de ação, sustentá-la toda em mudanças de voz não é tarefa fácil de ser vencida sem dificuldades. Contudo, o resultado final é satisfatório, uma vez que os desafios vencidos eram altíssimos, o que garbosamente confere aos vencedores mais louvores por seus méritos.

Adoração, que une dois textos de Nelson Rodrigues, Uma menina foi para o céu, 1935; e A paixão religiosa de Maria Amélia (1930) é uma produção do Grupo dos Cinco que deve fazer Porto Alegre se orgulhar.


*

Ficha Técnica:

Autor: Nelson Rodrigues
Textos recolhidos por Caco Coelho no projeto de pesquisa 'O Baú de Nelson Rodrigues'.
Dramaturgista: Caco Coelho
Concepção e Direção: Beto Russo
Atuação: Sandra Alencar
Preparação vocal: Ligia Motta
Preparação corporal: Heloisa Bertoli
Figurino: Margarida Rache
Cabelos e maquiagem: Elison Couto
Iluminação: Fabricio Simões
Gravação da trilha: Leandro Nunes e Lucio Alves
Consultoria em Psicologia: Luciane Engel
Desing gráfico: Luiz Cagol
Fotografia: Luciana Mena Barreto e Claudio Etges
Assessoria de imprensa: Sandra Alencar
Assistência de palco e recepção: Cristiane Freitas e Patricia Soso
Produção: Beto Russo e Sandra Alencar
Realização: Grupo dos Cinco

2 de dez. de 2010

Hybris


Foto: Fernando Pires


Desmaterialização versus Supramaterialização


É fato que a sociedade em que vivemos é híbrida. Se, na antiguidade, as grandes guerras unificaram a Europa e a Ásia no Império Romano, as navegações da Renascença uniram a América e a África e, no início do século XX, todos choraram a morte da Rainha Vitória da Inglaterra, nada disso pode ser comparado à quase eliminação das distâncias promovida pela internet. Não houve, ao contrário do que se pode pensar, a perda da identidade, mas percebeu-se a própria identidade como uma construção não-subjetiva e bastante social. O que faz com que identifiquemos algo em alguém (ou em outro algo) nada mais é que o nosso repertório, esse adquirido através de outros algos e de outros alguéns no passado social de que fizemos parte. Hybris, novo espetáculo do Grupo Falos & Stercus, opera, enquanto objeto artístico, em vários campos ao mesmo tempo: é expressionista com seus painéis móveis, figurinos, figuras embassadas e alargadas que aparecem, principalmente no início. É surrealista quando mistura idiomas, subverte a horizontalidade e a verticalidade, promovendo formas diagonais e também circulares, num todo que desperta no público diversas possibilidades de sensações. É extremamente tradicional quando constrói personagens bastante rígidos: a filha, a mãe, o pai, o namorado. É inovador quando utiliza ferramentas advindas do circo: o risco físico do rapel, a bicicleta de uma roda só. É mofado quando coloca pessoas nuas a abraçar o público. É novo quando apresenta para muitas pessoas o quase abandonado Pavilhão Popular do Hipódromo do Cristal, um mundialmente conhecido projeto do arquiteto uruguaio Román Fresnedo Siri, em Porto Alegre.

Nesse universo de quebra de paradigmas, a negação das estruturas e a utilização de todas elas dá ao espetáculo uma base justamente híbrida e, por isso, bastante contemporânea. O grande valor da proposta é que o emprego dessa opção estética se dá pelo tema em questão: as relações do ponto de vista de suas origens e formas também híbridas. O desvalor, infelizmente constante tanto quanto o valor, está no fato da metáfora, que une a base ao tema, acabar, por fim, obtendo pouco espaço. O que, afinal, toma o lugar nobre do sentido nesse espetáculo, impedindo o espectador de realmente se sentir tomado pelo objeto?

As estruturas de comunicação aparecem demais, mais que o que é comunicado. Hybris é como uma frase em que, após cada parte, há um parêntese explicativo, dizendo “sujeito”, “predicado”, “adjunto adverbial”, etc. O leitor se perde no que a frase quer dizer tamanha é a quantidade de formas diferentes de dizer o dito de que ela se utiliza. E as formas, que já são um modo de dizer, apesar de concordar com o dito, sendo também híbrida, acaba por se perder. Se as linguagens têm uso misto nesse espetáculo, talvez o seja porque, por primeiro, assim é o ponto de vista dele sobre as relações: qual é o realmente o sentimento que temos uns pelos outros? O amor filial não se mistura com o sexual? Um homem pode deixar de ser homem ao ser pai? O amor materno até que ponto faz bem e até que ponto faz mal? O amor pode levar à morte? Essa fusão de conceitos e transformação deles em proposta de reflexão, em tudo, concorda e ganha cores fortes no grande universo comunicativo que Hybris recupera. Nisso, o grupo está de parabéns.

No entanto, nem todos os aspectos produzem relações tão coesas entre a base e o tema. Apresentarei alguns, sem espaço, nem pretensão para todos:

1) O texto é dito de forma dura pelo grupo de atores. De todos do elenco, o único que consegue um efeito de verdade no dizer as falas é Frederico Restori, que interpreta o personagem da criança. Essa opção estética, ao se diferenciar do contexto e ser, também ela, um elemento dessa hibridização, prejudica, atrapalhando a fruição do espectador;

2) O cenário com linhas amarradas, instalado no andar superior do espaço cênico, tem uma plasticidade que não é explorada pela cena que, nesse local, acontece.

3) É nítida a ideia de utilização de todo o ambiente do Pavilhão. Como conseqüência, o espectador é nutrido por uma vontade de ver onde será a próxima cena mais do que pelo interesse do que acontece nela. Em se tratando de uma história que se revela, aos poucos, em sentido crescente (A filha (Bia Noy) é estuprada pelo pai (Fábio Cunha), tendo uma relação problemática também com a mãe (Carla Cassapo) e outra com mais dois homens (Fábio Rangel e Jeremias Lopes). O conflito evolui na aproximação que a filha almeja com o pai, culminando na decepção dela diante do que conhece pela própria boca do seu algoz.), essa dispersão é prejudicial.

Dessa forma, o rico projeto de desmaterialização formal resultou, antes, numa supramaterialização. Felizmente, motivado a ir conhecer o trabalho desse grupo tão importante para o teatro gaúcho, o público encontra um espetáculo rico em possibilidades, esse resultado de uma pesquisa bastante séria, além de essencial as nossas artes, recebendo os merecidos aplausos por quem reconhece que só quem tem a coragem, a experiência e o poder de muito investir pode se dar ao luxo de também consideravelmente perder. E quem ganha, no fim das contas, são todos nós.


*

Ficha Técnica:

Direção e dramaturgia: Marcelo Restori
Elenco: Carla Cassapo, Fábio Cunha, Luciana Paz, Fábio Rangel, Alexandre Vargas e Jeremias Lopes, Bia Noy (atriz recém chegada de Paris, onde atuou por 5 anos), Fredericco Restori (ator mirim)
Bailarinas: Aline Karpinski (também coreógrafa), Iandra Cattani, Ju Rutkowski, Carol Dias e Fabi Martins
Coreografia: Aline Karpinski
Cenários e ambientações: Luiz Marasca.
Trilha especialmente composta: 4 Nazzo e Cláudio Bonder
Desenho de luz: Veridiana Matias
Elaboração de projeto: Alexandre Vargas
Ass. de produção; Elenice Zaltron
Preparação vocal: Marlene Goidanich
Maquiagem: Juliane Senna
Resp. pela prep. de rappel: Fábio Cunha
Videos: Coletivo Incosciente (Frederico Ruas.e Zeca Brito)
Fotos e arte: Fernando Pires
Figurinos: Daniel Lion
Produção, divulgação e realização: Falos & Stercus

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